Há 40 anos, o craque fazia sua estreia pelo Corinthians. Em pouco tempo, se tornou ídolo e uma das personalidades mais influentes do Brasil sob o regime militar
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira nasceu no Pará, mas cresceu em Ribeirão Preto. O nome é fruto do interesse de Seu Raimundo Vieira nas teses filosóficas de Platão, somado a uma dose de intelectualidade e patriotismo. Também aprendeu com o pai o que significava ditadura ao vê-lo queimar boa parte da coleção de livros durante o auge repressivo do regime militar. O garoto de pernas compridas, magro e espichado chamava a cidade do interior paulista de “útero materno”. Apesar do destaque como jogador do Botafogo-SP, insistiu em conciliar a carreira nos gramados com o curso de medicina. Nem pensava em sair de Ribeirão, até uma proposta do Corinthians mudar os planos e os rumos de sua vida.
Em seu reduto, Sócrates tinha permissão do clube que o revelou para se dedicar aos estudos. Praticamente não treinava. A ambição como atleta profissional era inversamente proporcional à predileção por farras e bebedeiras. “Só quero pagar gasolina e cerveja com os trocados que ganho no Botafogo”, dizia. Assim que recebeu o diploma de médico, aos 24 anos, grandes clubes, cientes de que seu pai só o deixaria assinar um contrato depois de formado, passaram a cortejá-lo. Na mira do São Paulo, Sócrates viu o lendário presidente do Corinthians, Vicente Matheus, dar um chapéu no rival e oferecer 350.000 dólares ao Botafogo para contratá-lo. Cifras que o tornariam o jogador mais caro do Brasil até então. Era hora de cortar o cordão umbilical que o prendia ao útero materno e se despedir de Ribeirão.
No dia 20 de agosto de 1978, ele vestiu pela primeira vez a camisa alvinegra em um clássico com o Santos, seu clube do coração, pelo Campeonato Paulista. Muito marcado, teve atuação discreta no empate de 1 a 1, mas, diante de um Morumbi com quase 120.000 torcedores, já apresentava uma de suas maiores credenciais: o toque de calcanhar. Para ele, um recurso para compensar as limitações de deslocamento de seu 1,92 metro. “É um artefato que deixa meu jogo mais rápido.” Seis dias depois da estreia, marcou o primeiro gol pelo clube contra a Ferroviária, no Pacaembu. Conhecido pelos apelidos de “Magrão” e “Doutor”, só foi levantar uma taça no Paulistão da temporada seguinte, impressionando pela visão de jogo, os lances de pura classe e as tabelinhas com Palhinha.
Àquela altura, Sócrates já experimentava o que chamou de “transformação radical na vida”. Alcançou fama nacional e prestígio que jamais havia imaginado. “Nunca pretendi ser um ídolo. Antes [no Botafogo], eu jogava por prazer, mas o futebol está se convertendo num peso para mim. Se tiver de escolher entre viver minha vida com minha família e jogar futebol, eu não tenho dúvida: paro com o futebol”, afirmou pouco antes de conquistar o título paulista de 1979. Sua motivação para prosseguir na carreira com a bola era o desafio pessoal de disputar uma Copa do Mundo. Frustrado por não ter sido convocado para a seleção em 1978, apesar da sequência de boas apresentações pelo Botafogo, entendeu que o Corinthians poderia lhe dar mais visibilidade e colocou na cabeça que, depois que jogasse um Mundial, penduraria as chuteiras.
Em menos de um ano no Timão, realizou o sonho de vestir a camisa amarela num amistoso contra o Paraguai, em maio de 79. No ano seguinte, Telê Santana assumiu o time canarinho e o convenceu de que era preciso ser um atleta para jogar na seleção. Para tanto, abriu mão dos hábitos desregrados – fumava dois maços de cigarro por dia e não dispensava a companhia da cerveja. Pela primeira vez na carreira, se comportava como um jogador profissional. Sofreu durante os três meses de preparação do escrete brasileiro para a Copa de 1982, mas não se desviou da rotina rígida da concentração. Chegou à Espanha na plenitude da forma física. Como capitão, incorporou o papel de regente de uma das equipes mais brilhantes de todos os tempos, que, na tragédia do Sarriá, sucumbiu inesperadamente ao pragmatismo da Itália. “Essa é a maior frustração da minha vida. Saímos da Copa apesar de sermos o time que melhor jogou”, sentenciou o Doutor após o fim do jogo em Barcelona.
Antes do Mundial, Sócrates desfrutava de índices crescentes de popularidade. Era reverenciado por celebridades como a atriz Sônia Braga, em evidência depois de interpretar Gabriela e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Vascaína, ela fazia campanha para que seu clube contratasse o craque do Corinthians: “O Sócrates me atrai muito. Seu equilíbrio desequilibra toda uma defesa. Engana todos os zagueiros, finge que vai para a esquerda e penetra com elegância pela direita.” Foi dela também uma das definições mais precisas sobre o cacoete de celebrar seus gols com o punho cerrado ao estilo dos Panteras Negras, inicialmente encarado por muitos corintianos como um gesto frio ou até mesmo como falta de raça. “Eu, como atriz, sinto em Sócrates toda uma consciência de espaço cênico. Até vibrar diferente ele vibra. Não tem o compromisso da comemoração do gol como o Pelé, por exemplo, com aquele soco no ar. Ele não vibra mais que o gol. Vibra na medida exata.”
Um propósito além do futebol
No início dos anos 80, o meia esbanjava tanta confiança que se encorajou a gravar um disco de moda de viola, que batizou de Casa de Caboclo. A quem o criticava pela afinação distante do requinte que apresentava nos gramados, tinha uma resposta pronta: “Todas as pessoas devem ser livres para se expressar de qualquer forma, sobre qualquer assunto.” Reconhecia que a obra não era lá um primor sonoro. Porém, se orgulhava de ter ajudado a resgatar atenção para a música sertaneja e aberto portas a novos artistas do gênero. Em pouco mais de três anos, atingiu a marca de 100 gols pelo Corinthians, muitos deles em parceria com Walter Casagrande, uma das duplas mais aclamadas pelo torcedor corintiano. Jogaram juntos por apenas dois anos e meio. O suficiente para escreverem, como o ex-centroavante classifica em seu livro, “uma história de amor”. “Não era fácil jogar com o Sócrates”, conta Casagrande. “Ele sempre surpreendia. Eu precisava ter o raciocínio tão rápido quanto o dele.”
Os dois ajudaram a consolidar a Democracia Corinthiana, um movimento revolucionário no futebol brasileiro, em que os jogadores não só participavam das decisões diárias do clube, como se manifestavam publicamente pela redemocratização em plena ditadura. Sócrates aproveitava sua notoriedade para levantar bandeiras além do campo e exercer algo que lhe era tão caro: a liberdade de pensamento e expressão. Embora tivesse prometido a si mesmo parar depois de disputar uma Copa, voltou atrás ao perceber que havia se tornado o porta-voz de uma causa maior que a sede corintiana por títulos e vitórias. “Descobri que, jogando futebol, eu posso ser intermediário das aspirações e angústias de milhares de pessoas que se identificam comigo, que me veem como um guerreiro de sua luta.”
Sócrates era assim, consciente do peso de sua figura e também de suas contradições. “Sou radical até mudar de ideia”, brincava com os amigos. Preferia que discordassem dele à omissão de opiniões. No inverno de 1983, uma greve geral com adesão de cerca de dois milhões de trabalhadores parou o país em protesto contra as medidas de austeridade promovidas pelo regime militar. O craque se indignou com o Sindicato dos Jogadores, que optou por não se posicionar durante a paralisação. Acreditava que a classe deveria olhar mais para a sociedade. “As melhorias no país podem beneficiar o todo, inclusive o futebol”, pregava.
Com a partida de Zico para a Udinese, Sócrates se tornou o maior ídolo em atividade no esporte mais popular do Brasil. Passou a ser cobiçado por times do exterior. Recusou uma oferta milionária da Roma. Justificava que, se deixasse o Corinthians somente pelo dinheiro, trairia seus próprios valores. Na verdade, só continuava jogando por se sentir realizado em sua jornada como ativista social. Em 82, usou uma camisa incentivando o voto popular na primeira eleição direta para governador de São Paulo em quase duas décadas. Em 83, ele e os companheiros de Corinthians entraram em campo com uma faixa emblemática para o jogo do bicampeonato estadual sobre o rival tricolor: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. No ano seguinte, posou para a revista Placar vestido de Dom Pedro I, prometendo que, caso a emenda constitucional Dante de Oliveira fosse aprovada, ele permaneceria no Brasil. Endossada pela campanha das Diretas Já, a proposição acabou derrubada pela Câmara dos Deputados, e o “fico” do craque se converteu num adeus.
Menos de um mês depois da rejeição da emenda, desiludido com os rumos do país, abalado por uma crise matrimonial e seduzido pela proposta financeira fora da realidade, Sócrates se apresentava como jogador da Fiorentina. Seu verdadeiro desejo era seguir no Corinthians ou exercer a medicina, um sonho que não se concretizou, assim como, após rápida passagem pelo futebol italiano, nunca mais vestiu o manto corintiano, pelo qual marcou 172 gols em 298 jogos e ganhou três títulos paulistas. Se aposentou dos gramados aos 35 anos, relativamente longevo dada a preeminência de sua faceta boêmia. Apostando na capacidade de leitura das relações humanas, tentou ser técnico, mas não teve sucesso. “Na concentração, ele bebia mais que todo mundo”, delatavam seus jogadores. Morreu em dezembro de 2011, aos 57, no mesmo dia em que o Corinthians se sagrou pentacampeão brasileiro, vítima de complicações no fígado decorrentes do alcoolismo.
Chegou a defender Flamengo e Santos antes de voltar às raízes para o ato final pelo Botafogo de Ribeirão Preto. Seu último jogo oficial foi em 12 de novembro de 1989, contra o São José. Garantiu que não abandonaria seus ideais muito menos a causa dos desfavorecidos. “Quando eu era jogador, minhas pernas amplificavam minha voz. Se as pessoas não tiverem o poder de dizer as coisas, eu vou dizer por elas.” Três dias depois da despedida de Sócrates, os brasileiros, enfim, puderam exercer outra vez o direito de escolher o presidente da República no primeiro turno da eleição mais esperada da história. Perdeu o futebol, ganhou a democracia.