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Curitiba, ‘cidade modelo’, busca novas referências: “Ao menos não somos São Paulo”

A mobilidade e o urbanismo transformaram a cidade em exemplo mundial. Hoje tenta renovar sua identidade

Matéria publicada em Curitiba 3 JUL 2016 - 12:56 BRT



Uma piada que circula pela internet diz: “O que é o ego? É o pequeno curitibano que vive dentro de cada um de nós”. A capital do Paraná tem a eterna fama de amar bastante a si mesma. Vários estudos que a colocam como a melhor cidade do país (segundo um prêmio da Agência Austin Ratings e da revista Istoé, em 2015) e a mais verde da América Latina (de acordo com um relatório da Siemens do mesmo ano), entre outros, avalizam esse sentimento.

Hoje famosa pelas investidas do juiz Sergio Moro e a operação Lava Jato, a capital do Paraná já está sob os holofotes há muito tempo. Desde os anos setenta, Curitiba tem fama internacional porque ali existe dinheiro, porque vive-se bem, porque os moradores preocupam-se com o urbanismo e a sustentabilidade. Os outros brasileiros brincam às vezes com o caráter frio e europeu do município, além de tudo, o que não é corroborado pelo clima: basta dizer que as quatro estações cabem em um dia de Curitiba. Durante as últimas décadas, o Governo local promoveu uma imagem exemplar, com os slogans "Cidade Sorriso", "Cidade Ecológica" e "Capital Social do Brasil". Nos últimos anos, no entanto, as críticas ficaram mais duras: já não é mais o que era, vive de rendas. Em 2014, a crise tornou-se oficialmente internacional quando um blog do jornal francês Le Monde anunciou: “É o fim de um mito. Pouco depois, a Gazeta do Povo publicou uma reportagem intitulada Curitiba, ex-capital ecológica, precisa reinventar sua marca.

A grande transformação de Curitiba, fundada em 1693, começou há quatro décadas. Jaime Lerner, arquiteto e urbanista, chegou à Prefeitura em 1971. Em plena ditadura militar. A estreia do novo Governo municipal foi polêmica e marcou um precedente: Lerner decidiu encerrar o tráfego na rua XV de Novembro, uma avenida recheada de negócios e carros. Os comerciantes negaram-se a fazer isso, preocupados com a perda de clientes, e organizaram um bloqueio à rua no sábado. Ao chegarem, encontraram dezenas de crianças desenhando no asfalto. Em tempo recorde (um fim de semana), Curitiba inaugurou a primeira via de pedestres do Brasil. Desde então, é tradição que as crianças desenhem no chão aos sábados.

As duas primeiras legislaturas das três de Lerner (de 1971 a 1975, e de 1979 a 1985 e, enfim, de 1989 a 1991) definiram a “cidade modelo”. O prefeito desenvolveu, com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), que existe até hoje, um modelo de transporte inovador. Na contramão de outras grandes cidades, decidiu ignorar o metrô, por considerá-lo caro e pouco eficiente. Decidiu que os ônibus usariam vias expressas exclusivas nas ruas principais da cidade. Em seguida, nos anos oitenta, afinou o sistema: criou estações em forma de tubo que estão na altura das portas dos ônibus, onde os passageiros compram seus bilhetes antes de entrar (um sistema nada comum no Brasil, onde se paga a passagem ao cobrador ou ao motorista). Os ônibus passavam a cada minuto. O chamado Transporte Rápido por Ônibus (BRT, na sigla em inglês) tornou-se rapidamente um ícone, especialmente em um país onde os habitantes das grandes megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, sofrem diariamente com o transporte público, e onde não é raro que um trajeto da periferia ao centro dure duas ou três horas. Atualmente, por volta de 300 cidades usam o modelo BRT criado em Curitiba. Aproximadamente 45% da população da cidade utiliza o transporte coletivo, segundo a prefeitura, e a rede transporta por volta de 2,3 milhões de pessoas por dia, de acordo com o IPPUC, que usa como exemplo o metrô de Londres, com três milhões de passageiros diários.

Mas começa a haver problemas de eficiência no que Lerner pretendia durante seu mandato. Curitiba triplicou sua população desde os anos setenta, e atualmente, com 1,9 milhão de habitantes, é a oitava cidade do Brasil. Muitos usuários do transporte público reclamam que os ônibus já não passam com tanta frequência. Jaime Lerner conta como, quando era prefeito, um jornalista estrangeiro o entrevistou em seu apartamento para falar de sustentabilidade. “Minha mulher disse na frente do repórter que era impossível que os ônibus passassem com frequência de um minuto, e quase morri de vergonha. Levei-o à varanda, de onde poderia ver um ponto. Passavam a cada 40 segundos”, lembra, orgulhoso. Hoje em dia, os passageiros esperam mais, muitas vezes passando calor nas futuristas estações-tubo, que não estão preparadas. “Houve uma certa acomodação com a herança de Lerner. Parecia que tudo se resolveria sozinho, mas não houve inovações suficientes de impacto que acompanhassem o crescimento da cidade”, opina Eloy Casagrande Junior, professor da Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR) e coordenador de sustentabilidade do campus. “Faz falta um transporte menos poluente, o projeto do metrô nunca avançou”, afirma. A prefeitura enfrenta a recessão econômica do Brasil e herdou uma dívida de 579 milhões de reais da gestão anterior, mas insiste que mantém suas políticas sociais e sua aposta no transporte. Criou a chamada área calma, uma zona central em que a velocidade máxima é de 40 quilômetros por hora. Em quatro anos, garante ter reduzido em 40% o número de mortes em acidentes de trânsito e acredita que na atual legislatura criou a mesma quantidade de vias para ciclistas que existiam nos últimos 40 anos.


Paradoxalmente, Curitiba tem a maior frota de veículos do país (aproximadamente 1,4 milhão). Tem a ver, dizem os especialistas, com o fato de ser a quinta maior econômica nacional, segundo dados de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O PIB per capita da cidade, atrativa para a indústria, gira em torno de 42.900 reais, contra os 28.800 da média do Brasil.

Muros e violência
“Costumava ser uma cidade tranquila”, diz um taxista que se mudou do centro para a serra para criar seus filhos com mais segurança. Atualmente, nas áreas ricas, os prédios estão protegidos por muros e crescem o número de urbanizações que têm de tudo dentro delas. A taxa de homicídios, em 2014, foi de 30 pessoas a cada 100.000 habitantes, mais que o dobro do que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera tolerável. Grande parte da segurança de Curitiba depende da Polícia Militar (ou seja, do estado do Paraná, e não da Prefeitura). “Há escassez de policiais, e as pessoas começam a buscar alternativas. Na minha rua, por exemplo, começaram a falar em vigilantes de bairro, porque têm havido assaltos constantes”, disse Eloy Casagrande.

Curitiba está cercada por uma região metropolitana em constante crescimento, com 3,2 milhões de habitantes. São municípios independentes, em geral mais pobres, onde vivem muitas pessoas, que todos os dias viajam ao centro para trabalhar. A demanda por serviços públicos da Prefeitura aumentou muito nos últimos anos, segundo o governo municipal, tanto que, atualmente, 40% das consultas na Unidade de Pronto Atendimento (centros de saúde de primeiros socorros) são de habitantes da região metropolitana, de acordo com o IPPUC. Estado e cidade têm, além disso, governantes de partidos diferentes (Partido da Social Democracia Brasileira no Paraná, e Partido Democrático Trabalhista, em Curitiba), o que complica as relações.



Parques, lixo e ar
“Os parques são as praias de Curitiba”, dizem os locais. O índice de área verde da cidade é de 64,5 metros quadrados por habitante, segundo a Prefeitura, diante dos escassos 14 de São Paulo, e aqui se respira um dos ares de mais qualidade do país. Os ativistas do meio ambiente estão preocupados em não dar passos para trás. Nove em cada dez lagos dos parques curitibanos estão contaminados, segundo o Instituto Ambiental do Paraná, e o crescimento da construção parece irreversível. “Temos que garantir que o Plano Diretor (o plano urbanístico de Curitiba) combata a exploração imobiliária. Há muita pressão do setor de construção”, insiste Casagrande. O exemplo paradigmático é a Casa Gomm. Um casal de classe alta construiu a mansão no começo do século XX, em um enorme jardim. Em 1989, com a morte dos herdeiros, um empresário local comprou o terreno, desmontou a casa e a transportou alguns metros. O jardim foi reduzido praticamente pela metade, e hoje em dia, a casa amarela, que funciona como escritório para funcionários estaduais e está aberta para visitantes, fica na sombra de um gigantesco shopping. Um pequeno grupo de moradores luta para preservar a área, cultiva plantas e organiza reuniões e shows. Em um canto, juntam resíduos orgânicos para fazer adubo.

A reciclagem é uma das bandeiras de Curitiba desde que, no começo dos anos noventa, a Prefeitura criou o Programa Compra do Lixo, para trocar os resíduos por vales de transporte e alimentos. Quatro quilos de lixo valem um quilo de frutas e verduras. Os curitibanos, conta Sérgio Póvoa, presidente do IPPUC, são educados desde crianças a separar o lixo em casa. Atualmente, a cidade reaproveita por volta de 70% dos resíduos (embora, segundo outros dados, a porcentagem seja muito menor, entre 20% e 30%) e trabalha com uma rede de catadores, recolhedores informais de lixo reciclável e não reciclável. Casagrande insiste que o sistema precisa ser melhorado, especialmente porque os lixeiros vivem em condições muito precárias. “Os netos dos recolhedores de lixo têm o mesmo trabalho que seus avôs, com condições de trabalho pobres e salários muito baixos. Geração após geração, não conseguem sair da miséria”, afirma.

O jornal Gazeta do Povo anunciava, em um editorial de 2011: “É como se a cidade estivesse desistindo de parecer com Paris para parecer com Cingapura, arranhando os céus e fazendo das torres de espelhos seu patrimônio para o futuro [...] Era Capital Social. Era Cidade Ecológica. Agora, prepara-se para ser um centro pirotécnico, com economia vibrante, alto poder de consumo, onde se pode andar de carro como se fosse Los Angeles, olhando pelo retrovisor a vitória de uma arquitetura autista, incapaz da mais simples tarefa: dialogar com as calçadas”. “Curitiba ainda é uma referência, mas já não é mais um foco de inovação. Tem que voltar a inovar”, alerta Lerner, de 78 anos, em seu estúdio, uma casa de dois andares com jardim, enterrada entre arranha-céus.

O passado dourado de Curitiba colocou as expectativas lá em cima. Seus habitantes reclamam de viver em uma cidade maior que antes, mais perigosa que antes, com transporte pior que antes. Depois de décadas na vanguarda, vive na sombra de si mesma. No entanto, quando se conversa com curitibanos sobre o resto do Brasil, a maioria suspira com alívio: “Pelo menos”, dizem, “não somos São Paulo”.

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