JOSEBA ELOLA |
O surgimento das redes 5G vem acompanhado de promessas de velocidades de download inusitadas, de entornos de máquinas que se comunicam entre si, de carros autônomos que, por fim, poderão circular, de cirurgias à distância. As empresas de tecnologia anunciam o surgimento da enésima next big thing, o enésimo grande acontecimento que mudará tudo (e graças ao qual, de passagem, nos venderão novos produtos). Com sua chegada, prometem, por fim se abrirão as portas a novos mundos de realidade aumentada e virtual. Mas é preciso levar em conta o lado B do 5G: em um planeta hiperconectado, as possibilidades de que sejamos hackeados, espionados e controlados por empresas e Governos se multiplicarão.
Glória, glória, glória ao 5G, maná da nova era prestes a nascer. O entusiasmo pelo advento das novas estradas da comunicação pelas quais circularão nossos dados volta a saltar em epítetos superlativos. Se levarmos em consideração os cânticos de empresas de tecnologia, operadoras e demais agentes do mercado, o 5G é the next big thing, o novo grande acontecimento, o enésimo game changer, a chave que mudará tudo; conceitos periodicamente agitados para vender novos produtos.
O 5G desembarca envolto em campanhas de marketing e comunicação que anunciam um mundo hiperconectado de cirurgiões que operam à distância e em tempo real, através de um robô, pacientes de outro continente, de fazendas inteligentes com semeadura, irrigação e colheita eficientes graças ao processamento de dados do solo e do clima, e de carros autônomos compartilhando informação em milésimos de segundo que nos avisarão que há uma placa de gelo após a curva. Não faltam vozes que alertam de que nos encontramos diante de um novo hype, um fenômeno exagerado que, além disso, esconde efeitos colaterais inquietantes.
Por enquanto, a novela que cerca esse novo imã tecnológico não começou mal: mandatários com pinta de ogros enroscados em uma guerra comercial por trás da qual está a luta pela supremacia mundial; promessas de velocidade, aromas de latência e, como se faltassem ingredientes, perspectivas francamente favoráveis para todos os que quiserem ser hackers na nova era. Bem-vindos a um mundo hiperconectado e ultravulnerável.
Nossos celulares farão downloads mais rapidamente. Baixaremos filmes em um segundo. O tempo que transcorrerá entre o envio de uma mensagem e sua chegada – a latência – será de um milissegundo – agora oscila entre os 40 milissegundos e um décimo de segundo –, abaixo do tempo de resposta de um ser humano. O 5G, quinta geração de telefonia celular, permitirá o desenvolvimento de sistema que farão que nosso carro freie se o da frente o fizer. E serão milhares, depois milhões, o número de dispositivos – celulares, aparelhos, sensores – que poderão se conectar por metro quadrado sem que isso afete a cobertura. Tudo isso no futuro: as redes comerciais utilizadas hoje em países como a Espanha são um 5G que ainda se apoia nas redes 4G. A quinta geração de celular, em pleno rendimento, chegará, de fato, a partir de 2021.
A informação viajará por bandas de alta frequência, existirão antenas em todos os lugares – postes, mobiliário urbano – e pelas novas estradas da informação circularão enormes quantidades de dados. Isso permitirá ver pessoas jogando videogames como Fortnite, League of Legends e Call of Duty, que hoje em dia só dão bons resultados com a conexão de casa, no celular; fábricas inteligentes com todas as máquinas da produção conectadas e compartilhando informação, e em algum dia não muito distante, drones substituindo os mensageiros nas entregas a domicílio.
Atender melhor e mais rapidamente os feridos em um acidente e qualquer outra emergência também será mais eficaz graças ao 5G. Por exemplo, um acidente no porto de Valência. Os serviços de emergência poderão enviar um drone que emite imagens em tempo real que permitirão calibrar a situação. Se é um atentado ou se é um acidente. Os semáforos conectados ficarão verdes para dar passagem às ambulâncias. O furgão policial, ao chegar ao local dos fatos, poderá utilizar sua própria rede 5G se a área perder cobertura (o chamado network slicing, fornecendo comunicações de qualidade em um local específico em questão de segundos). “O tempo de reação é um elemento crítico para salvar vidas”, enfatiza Jaime Ruiz Alonso, engenheiro de telecomunicações e pesquisador do Nokia Bell Labs.
Ruiz Alonso sabe do que fala. Há dois anos presenciou ao vivo um incêndio na serra de Gata, na Extremadura, na Espanha. Estava na cidade de Villamiel. De lá viu como queimavam carvalhos e pinheiros pelo avanço impiedoso do fogo. Comprovou o que é atender uma emergência com as comunicações interrompidas, sem drones que permitem obter informação sem expor vidas de bombeiros. Em sua equipe de inovação na Nokia, o espanhol de 49 anos começou a trabalhar em protocolos de telefonia para recuperar comunicações em casos de emergência. Desenvolveu um modelo com o 4G, mas explica que tudo será mais fácil com a próxima geração de celulares. “Quando o 5G estiver espalhado, existirão protocolos para saber onde estão os usuários e comprovar se estão presos no meio da mata em chamas”, conta.
A combinação de 5G e inteligência artificial, se acredita, é a porta de entrada à muito alardeada Internet das coisas (IoT, na sigla em inglês). Caminharemos pela rua de uma cidade inteligente com óculos e fones que nos dirão o nome da pessoa que acabamos de encontrar e de quem gostaríamos de lembrar. A oportuna e valiosa informação aparecerá sobreposta à realidade graças aos óculos e nos será sussurrada ao ouvido. “Passaremos a viver na realidade mista” – também chamada realidade aumentada –, diz Xavier Alamán, professor de Ciências da Computação e Inteligência Artificial da Universidade Autônoma de Madri. Esperaremos o ônibus com nossos óculos, mas poderemos ver por onde vai e se está aproximando-se de nossa rua. “Prever é muito difícil, principalmente o futuro”, diz ironicamente Alamán, parafraseado a citação atribuída ao físico Niels Bohr, “mas eu acho que em 10 anos os celulares desaparecerão”.
Alamán, espanhol de 57 anos, demonstra ser um entusiasta da Microsoft HoloLens, óculos-viseira parecidos aos de esqui que nos permitem interagir com projeções de gráficos em 3D. Darão informação a, por exemplo, um mecânico que poderá ver gráficos do interior do motor flutuando no ar enquanto conserta um automóvel. Em um futuro não muito distante, os óculos nos permitirão abrir por sobre a realidade (o vagão do trem) uma tela de cinema virtual em que veremos o filme (em escala muito superior à dos atuais tablets) enquanto na lateral poderemos ler as mensagens de WhatsApp e equivalentes. “Se todos derem o salto a esse tipo de dispositivo, o mundo mudará mais do que o fez com o telefone celular”, prevê Alamán. As pessoas viverão em um entorno que mistura realidade com o virtual. A febre iniciada há três anos no Parque do Retiro (Espanha) com a caça de figuras virtuais do Pokémon GO é um simples aperitivo do que virá. As velocidades e as latências do 5G (e o 6G, que já está sendo trabalhado) são fundamentais para esse tipo de desenvolvimento.
Após os óculos virão as lentes de contato. E os tempos de andar pela rua com a cabeça baixa olhando a tela do celular serão história.
A prestigiosa revista de tecnologia Wired se aventurou a antecipar enfaticamente, no número de março, o mundo que virá. Foi batizado de mirrorworld, o mundo espelho. Uma plataforma tecnológica que replicará cada coisa do mundo real para nos oferecer sua via virtual. Com os dispositivos de realidade aumentada, o cirurgião verá uma réplica em 3D de nosso fígado enquanto o opera e veremos com os óculos como era nos anos 30 do século passado, quando foi bombardeado, o monumento que temos diante de nossos narizes.
O futuro que se abre no mundo dos wearables, as tecnologias colocáveis, óculos, relógios, fones de ouvido, é algo no qual muitas marcas apostam, entre elas a Samsung. O gigante tecnológico coreano apresentou sua estratégia 5G em junho em uma viagem da imprensa à Coreia – O El País Semanal foi convidado, ao lado de um seleto grupo de veículos de imprensa nacionais e internacionais –. Seul, de fato, é uma dessas cidades em que está sendo construído o futuro das telecomunicações. E a Coreia é um dos quatro países que lideram a corrida do 5G, atrás dos Estados Unidos e China e ao lado do Japão, de acordo com um estudo da consultoria Analysys Mason.
A capital coreana é uma cidade de arranha-céus e congestionamentos pelos quais as pessoas transitam em carros com os vidros de insulfilm. De dia, seus habitantes fogem do calor e da má qualidade do ar refugiando-se em shoppings climatizados nos quais usam o cartão de crédito. Em seu livro Problema no paraíso: Do fim da história ao fim do capitalismo, o filósofo esloveno Slavoj Zizek a descreveu como a epítome de um capitalismo tecnológico levado ao absurdo: trabalhar à extenuação para consumir como se não houvesse amanhã.
A utilização do 5G na cidade está bem avançada e se nota: o celular vai rápido. São registradas velocidades de até 820 megabits por segundo, o triplo do que com uma conexão padrão em Madri, com quedas a 400 em algumas regiões, de acordo com os testes realizados por vários jornalistas europeus. Nessa avançada cidade, a sexta mais poderosa do mundo de acordo com a revista Forbes, o presidente e executivo-chefe da Samsung, DJ Koh, recebeu a imprensa europeia em um hotel de luxo. Lá afirmou que os dispositivos inteligentes logo serão mais importantes do que os próprios telefones.
“A infraestrutura 5G será o motor e a força da quarta revolução industrial”, afirma Koh, executivo de 57 anos que vem de uma família pobre e que percorreu um longo caminho ao topo estudando, durante alguns anos, no Reino Unido. A combinação de 5G e inteligência artificial, afirma, irá mudar tudo. “A Internet das coisas é o que conectará indivíduos, casas, fábricas, escritórios, cidades e nações. E o carro conectará todos esses elementos”. Em sua opinião, nos próximos três ou quatro anos veremos mudanças de maior impacto do que na última década.
Os quartéis-generais da Samsung estão em Sewon, a 80 quilômetros de Seul. Nesse espaço de torres altíssimas e longas avenidas vazias – com exceção da hora (melhor dizendo, meia hora) do almoço – se chega por uma rodovia com as mesmas sinalizações verdes das highways norte-americanas. Aqui as pessoas, como não podia deixar de ser, também se entregam às visionárias doutrinas de Stakhanov, artífice intelectual das jornadas de trabalho sem limites. Os funcionários (30.000 na base central, 320.000 em todo o mundo) têm em Sewon tudo o que é necessário para passar o dia e não ir para casa a não ser para dormir: as inevitáveis mesas de pingue-pongue, o clube de judô, salas para desenvolver os mais variados passatempos, a piscina para nadar um pouco...
Em um de seus edifícios possuem uma réplica da casa da Internet das coisas, um lar governado por celular. O ar condicionado é acionado do carro, antes de se chegar em casa, com uma ordem de voz. A porta se abre quando nosso telefone é detectado. Ao chegar à geladeira, temos nela uma tela com a qual colocamos música, consultamos a previsão do tempo e vemos as fotos do dia (isso já é uma realidade). Na sala, em uma televisão de 98 polegadas, são projetadas imagens de quem toca a campainha e das câmeras de segurança exteriores, além dos canais e plataformas, claro.
A Samsung afirma ter vendido um milhão de telefones 5G na Coreia nos primeiros 87 dias após seu lançamento. Já colocou redes de 5G em seis cidades. Em dois ou três anos, afirmam, terão coberto todo o país.
A Espanha, por sua vez, não está nesse nível no desenvolvimento do 5G, mas não está tão mal. Possui uma cobertura de fibra óptica [infraestrutura sobre a qual se estendem as redes 5G] superior à do Reino Unido, França e Alemanha juntos, como diz em seu branco escritório o secretário de Estado da Agenda Digital, Francisco Polo. Em escala europeia, é um dos três Estados membros da UE que mais testes de funcionamento realizaram, de acordo com os relatórios do Observatório 5G europeu. “Minha esperança é que o 5G nos dê uma nova oportunidade”, diz Polo. “Se a extensão de infraestrutura determinasse o avanço tecnológico dos países, a Espanha já seria uma potência mundial”.
A quinta geração de telefonia celular terá um impacto econômico de 12 trilhões de dólares (49 trilhões de reais) até 2035, de acordo com a consultoria IHS Markit. Muitos atores do setor falam de uma nova fase de reindustrialização, de uma revolução industrial.
O desenvolvimento dessa nova tecnologia em escala planetária sofreu um sério golpe em 16 de maio quando o presidente Trump assinou uma ordem executiva proibindo a venda de bens e serviços à empresa chinesa Huawei, maior fornecedor mundial de redes 5G.
Estamos no momento da expansão de infraestrutura, de assinatura de contratos, e nos Estados Unidos é preocupante que os caminhos pelos quais circularão enormes quantidades de dados, e das quais infraestruturas críticas dependerão, estejam nas mãos do inimigo. Por trás do veto estava a acusação, sem provas, de que a tecnologia chinesa contém “portas traseiras”, buracos propícios à espionagem. “Nunca forneceram evidências e fatos e não ocorreu um processo judicial”, afirma nos quartéis-generais da empresa chinesa em Madri Tony Jin Yong, executivo-chefe da Huawei. “Vetar uma empresa privada que tem relações comerciais com empresas norte-americanas é realmente estúpido. E um pensamento muito a curto-prazo”.
A Huawei está em 170 países e já assinou 50 contratos com operadores de todo o planeta, de acordo com os dados fornecidos pela empresa. Foram os primeiros, enfatizam, em colocar à disposição de seus clientes uma rede 5G completa de uma ponta a outra – têm somente alguns rivais como fornecedores de redes: Nokia (Finlândia), Ericsson (Suécia), Samsung (Coreia), DoCoMo (Japão) e ZTE (China) –. Estão se espalhando pelo mundo oferecendo preços muito competitivos. E tudo isso contribui para que Jin Yong acredite que a Huawei está sendo usada na guerra comercial entre os EUA e a China. “Se não posso competir com você e superá-lo, irei vetá-lo”, diz Yong, irritado. “É uma lógica ridícula. E estão utilizando seu poder como nação contra a Huawei, uma empresa privada”.
A marca acusou uma queda de 30% nas vendas de celulares na Espanha na primeira semana após a crise desencadeada por Trump.
O analista e pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov, autor da recente e incisiva coleção de ensaios Capitalismo Big Tech, vai além em sua análise da crise: “Qualquer país razoável pode ver que os EUA estão dispostos a utilizar ferramentas de extorsão para ganhar alguma vantagem nas negociações comerciais”, diz em conversa por telefone do sul da Itália. Morozov não descarta a existência de portas traseiras em equipamentos da Huawei, mas acrescenta: “A probabilidade de que os dispositivos e acessórios que chegam dos EUA tenham buracos e portas traseiras é ainda mais alta. Os norte-americanos há anos escutam nossos telefones e esse é um escândalo que a Europa ainda precisa abordar. Tecnicamente falando, preocupar-se pela vulnerabilidade de nossas redes não faz sentido porque já são vulneráveis: está claro que a NSA [agência de inteligência norte-americana] tem uma maneira de monitorá-las”.
O futuro, de qualquer forma, se apresenta mais vulnerável. Ainda que os especialistas afirmem que as redes 5G são a priori mais seguras do que as predecessoras, a mera multiplicação de milhões de antenas e o crescimento exponencial dos dispositivos conectados na IoT oferecerão novas e suculentas oportunidades ao hackeamento. “Quanto mais tecnologia utilizarmos, mais vulneráveis somos”, afirma o especialista em segurança informática David Barroso; “quanto maior a exposição, pior”.
Barroso, fundador da CounterCraft, empresa de contrainteligência digital que elabora um produto dirigido a Governos e grandes empresas para colocar armadilhas aos atacantes, afirma que o perigo virá pelas brechas de segurança de dispositivos que a indústria colocará à venda sem as medidas de segurança necessárias. Algo que, diz, já acontece: cada novo dispositivo conectado (carros, geladeiras, webcams instaladas em casa, assistentes pessoais) têm um cartão SIM; às vezes os fabricantes instalam contrassenhas fáceis para que os administradores os acessem sem complicações: estamos expostos.
Se alguém conseguir acessar os comandos de um carro autônomo, fazer com que pareça um acidente será mais fácil. Sem falar dos comandos de um avião.
O coordenador europeu de luta antiterrorista Gilles de Kerchove publicou em junho um relatório em que alertava sobre o risco de emergência de novas formas de terrorismo muito mais letais pela utilização das redes 5G e dos avanços em inteligência artificial. Os computadores quânticos poderão decifrar dados encriptados; os aparelhos interconectados poderão se manipulados à distância e voltar-se contra nós, e a biologia sintética permitirá a recriação de vírus fora dos laboratórios, com diz em seu relatório. A Europa precisa de uma política de cibersegurança comum.
A polêmica sobre todas as vulnerabilidades das redes também desperta o debate sobre se colocar infraestruturas críticas em mãos privadas, não importa a procedência, é uma boa ideia.
As prevenções pelo desenvolvimento do 5G não acabam aí. Há vozes que se erguem contra algo que, dizem, aumentará a brecha digital, que conectará ainda mais os já conectados. Peter Bloom, fundador da Rhizomatica, associação civil que monta redes alternativas para abastecer lugares remotos e isolados, afirma em uma coleção de ensaios que o problema do 5 G é que não está centrado nos humanos, e sim nas máquinas. São elas as que se comunicam entre si, não nós. “Quando as pessoas já não são o foco intrínseco do sistema de comunicação”, escreve, “então algo fundamental mudou na natureza da Rede”.
Quanto mais tecnologia usamos, mais problemas resolvemos, e mais criamos. A hiperconectividade vem carregada de facilidade de acesso, rapidez, agilidade nas comunicações, novas comodidades. Mas quanto mais dispositivos existirem e mais informação compartilharmos pelo éter, mais vulneráveis seremos e maiores serão as possibilidades de que nos vigiem, de que nos espiem e, portanto, de ser manipulados.