Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre. Escola Normal de Brotas (São Paulo, 1966-1967).Collection IEB, São Paulo
A Bienal de Arquitetura de Orléans, na França, escolheu como convidado de honra dessa edição o trabalho do grupo "Arquitetura Nova" que entre 1961 e 1971 realizou uma série de experimentos sobre novas técnicas de construção e relações mais humanizadas nos canteiros de obras, criticando as condições de trabalho brutais dos operários que construíram Brasília.
A exposição, montada em uma igreja do século 12 no centro da cidade de Orléans, é a primeira mostra internacional, com documentos, fotos, instalações, quadros e filmes dedicada ao grupo de arquitetos brasileiros que se caracterizou pela resistência à forma de industrialização acelerada do Brasil, “dissimulada pelas curvas sinuosas da nova capital em construção”.
Exposição sobre “Arquitetura Nova” na Collégiale-Saint-Pierre-le-Puellier na Bienal de Orléans.Martin Argyroglo
Decepcionados pelas “falsas promessas” da estética livre da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, consagrada no mundo inteiro, os arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèbre e Flávio Império constituíram a partir de 1961 um núcleo de reflexão que contestava as condições de produção e eliminava a hierarquia dos canteiros de obras, condenando a exploração dos operários.
Arquiteto, artista plástico e professor Sérgio FerroM.E. Alencar/ RFI
O sonho de instaurar uma nova arquitetura, preconizado pelo grupo, acabou com o golpe militar de 1964. Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre ingressaram na Ação Libertadora Nacional (ALN), resistência armada dirigida por Carlos Marighella. Em 1970, eles foram presos e torturados.
O mundo infernal dos trabalhadores da construção civil
Aos 81 anos, Sérgio Ferro - exilado na França desde os anos 70, onde tem uma carreira reconhecida de artista plástico e professor - é o único integrante ainda vivo desse movimento. Presente em Orléans para a inauguração da exposição ele falou à RFI.
A ideia de ‘Arquitetura Nova’ é mostrar o que se passa entre o desenho arquitetônico e o edifício realizado, isto é, o canteiro de obras, o mundo infernal da construção civil. São os trabalhadores os que mais fornecem riqueza ao país e ao mesmo tempo os que mais sofrem com acidentes de trabalho e com as doenças mais prejudiciais. Há um contraste entre a riqueza que eles produzem e as condições nas quais eles produzem essas riquezas.
Lamenta Ferro.
O arquiteto lembra que foi observando as condições de trabalho dos candangos(denominação que se dava aos trabalhadores que participaram da construção de Brasília) que surgiu a visão do grupo “Arquitetura Nova”. “Vimos o imenso contraste entre o que todo mundo achava de Brasília, a capital que iria modificar e reunificar o Brasil, e a situação dos canteiros de obras, que era de miséria, fome e exploração”.
Segundo ele, “Um Brasil novo queria se erguer nessa época, mas com um alicerce de podridão e sofrimento dos trabalhadores”. Na exposição em Orléans, fotos do francês Marcel Gautherot sobre a construção de Brasília e diferentes documentos mostram as condições de trabalho dos “candangos”.
“Arquitetura de Exploração” em Brasília ou Abu Dhabi
Ferro compara a situação de Brasília nos anos 60 com a dos operários paquistaneses ou filipinos de Abu Dhabi e Dubai, que constroem as “torres douradas cheias de luxos” em condições de trabalho e de vida escandalosas. E lembra que a exploração dos trabalhadores da construção data, infelizmente, do fim da Idade Média, com a arquitetura gótica e renascentista, que pode ser caracterizada como uma “arquitetura de exploração”.
Uma seleção de desenhos, imagens e textos cedidos pela FAU USP (Faculdade de Arquitetura e de Urbanismo da Universidade de São Paulo e do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), além de arquivos pessoais de Sérgio Ferro, mostram, na exposição da Bienal de Orléans, não só a dimensão histórica do grupo, mas também a criatividade e o método de trabalho desses arquitetos que construíram, entre outros prédios, a Escola Normal de Brotas em São Paulo e a Residência Amélia Império e Ernest Hamburger.
Nossa arquitetura era absolutamente racionalizada, pensada nos mínimos detalhes. Não há nenhum traço gratuito. Prestávamos uma atenção minuciosa sobre o ponto de vista da execução e do trabalho, obtendo economias de 30% a 40%, mesmo aumentando o salário dos trabalhadores.
Observa Ferro.
Usina Ctah - A resistência continua
Para o curador da segunda edição da Bienal de Orléans, Abdelkader Damani, “Arquitetura Nova” se insere na temática do evento que é exaltar uma arquitetura engajada, que apresenta de alguma maneira uma promessa de liberdade.
Segunde ele, falar desse movimento que pensou a arquitetura de forma diferente, que criticou “o sonho de Brasília, que foi sucedido pela ditadura militar” é também tratar do que se passa no Brasil de hoje, onde a “resistência continua contra a ameaça de uma nova ditadura no país” insiste ele.
Abdelkader reconhece, no entanto, a genialidade de Oscar Niemeyer, “um grande maestro da história da arquitetura”. Mas, segundo ele, Niemeyer já tem muitos museus à disposição para mostrar a sua obra e o combate de uma bienal de arquitetura é mostrar o trabalho de um grupo como “Arquitetura Nova”, que se ocupa daqueles que foram esquecidos.
Abdelkader DamaniM.E. Alencar/ RFI
A Bienal destaca ainda nessa edição, com fotos e vídeos, o trabalho da Usina Ctah, um coletivo de arquitetos que desde 1990 apoia diferentes movimentos dos sem teto para a aquisição de moradias e mutirões para a construção de habitações populares na região de São Paulo. “Usina Ctah são os herdeiros de “Arquitetura Nova», é o movimento de resistência que continua no Brasil de hoje”, afirma Abdelkader Damani.
Também presente em Orléans, João Marcos Almeida Lopes, diretor da ong Usina Ctah, que já ajudou a construir moradias para sete mil famílias, explicou à RFI como funcionam os projetos.
João Marcos Almeida LopesM.E. Alencar/ RFI
“As pessoas participam desde o inicio da concepção e da construção de suas próprias casas. Nossa ideia não é realizar um projeto imposto de cima para baixo. As moradias construídas pelo sistema de autogestão proporcionam às famílias uma maior capacidade de articulação na cidade, elas conseguem resolver seus problemas de maneira mais satisfatória do que os ocupantes de projetos como Minha Casa e Minha Vida” Diz ele.
Lopes aproveita para relatar as dificuldades atuais da Usina Ctah:
Hoje temos um governo muito avesso a iniciativas como essa. Nós somos os chamados ativistas e baderneiros que o presidente Bolsonaro quer extinguir. Atualmente temos muitas dificuldades para obter recursos do governo federal, estadual ou municipal e para tocar empreendimentos como esse.
Conclui ele.
Lina Bo Bardi homenageada por estudantes de arquitetura
O Brasil ainda está em destaque nessa Bienal na exposição sobre a célebre arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, apresentada em duas midiatecas de Orléans.
Concebida pelos estudantes da Escola de Arquitetura de Paris -Belleville, em colaboração com a Universidade Roma Sapienza, a exposição conta com móveis, maquetes, fotos e vídeos sobre a obra de Bo Bardi espalhados por diferentes espaços de leitura das midiatecas, convidando os visitantes a conhecerem a obra da arquiteta.
A exposição foi projetada e montada ao longo de dois anos e contou com a participação de 144 estudantes e 28 professores. A ideia foi mostrar como esses estudantes se apropriaram das obras de Bo Bardi, fabricando à sua maneira os móveis criados pela arquiteta e maquetes que são uma interpretação de suas realizações arquitetônicas.
A mostra exibe ainda os vídeos do cineasta e coreógrafo Arnold Pasquier, que acompanhou o trabalho dos estudantes e entrevistou pessoas que conheceram ou trabalharam com Lina Bo Bardi.
Elisabeth Essaïan, curadora da exposição, relatou em entrevista à RFI o processo de descoberta da obra da arquiteta pelos estudantes franceses e italianos.
Eu penso que foi uma maneira de descobrir a modernidade sob outro aspecto. Lina Bo Bardi propõe, por um lado, uma arquitetura moderna extremamente sensual e por outro, uma arquitetura extremamente engajada, com uma grande reflexão sobre a realização da obra e sobre a economia da construção
Observa ela.
Segundo ela, os estudantes ficaram tão fascinados pela obra da arquiteta ítalo-brasileira que muitos deles viajaram depois para o Brasil para conhecerem in loco as realizações de Linha Bo Bardi.
Orléans: célebre por Joana D’Arc e referência mundial da arquitetura
A cerca de 130 quilômetros de Paris, Orléans, situada na região Centre-Val de Loire, é muito conhecida por sua importância na História da França. Foi nessa cidade, em 1429, durante a Guerra dos Cem Anos, que Joana D’Arc conseguiu vencer os ingleses.
A heroína nacional - que foi queimada viva em 1431 em Rouen e canonizada em 1920 - é aliás celebrada todos os anos em Orléans com festas no mês de maio.
A partir de 1999, com o evento ArchiLab, Orléans, que sempre teve uma vocação turística por sua história milenar, vem se tornando também uma referência mundial de arquitetura contemporânea. A mostra foi sucedida em 2017 pela Bienal de Arquitetura que já está em sua segunda edição.
Isso se deve ao trabalho do Frac Centre-Val de Loire (Fundo Regional de Arte Contemporânea da Região Centro) que dispõe de uma importante coleção de arquitetura experimental, gerida por um centro cultural de aspecto futurista denominado “Turbulences”, projeto dos arquitetos Jakob e Mac Farlane. A instituição possui cerca de 800 maquetes, 15 mil desenhos, 600 obras de arte de 150 arquitetos e 170 artistas.
Para essa segunda Bienal de Arquitetura, intitulada “Nos années de solitude” (“Nossos anos de solidão”, em tradução livre), seis curadores foram convidados a organizar exposições sobre diferentes formas de engajamento de arquitetos em vários continentes.
Além do trabalho do grupo “Arquitetura Nova”, estão em foco nessa Bienal as realizações do arquiteto francês Fernand Pouillon, que construiu habitações populares na Argélia nos anos 50 e 60, artistas e arquitetos árabes cujas obras participaram de movimentos de emancipação em diferentes países, vídeos e instalações sobre o desmantelamento de estruturas estatais no México e uma série de imagens, transformadas pela Inteligência Artificial, que foi batizada de “Arquitetura como animal mutante”.