A arte foi capaz de superar os muros do palácio e iluminar um pouco os Windsor, uma das famílias reais mais longevas e obscuras da Europa
A rainha Elizabeth II, em sua mensagem de Natal no Castelo de Windsor, em dezembro de 2019.STEVE PARSONS (AP)
MARÍA PORCEL |
Durante a segunda metade do século XX ―principalmente graças à televisão―, a cultura popular bebeu sem filtro e sem fim a vida de telenovela da atual monarca britânica, Elizabeth II, e sua família, os Windsor. Nas últimas semanas os acontecimentos da realeza voltaram a ser expostos além dos muros do palácio de Buckingham e o restante das dependências reais: seu neto Harry da Inglaterra e sua esposa, a ex-atriz norte-americana Meghan Markle, decidiram dar um passo atrás como membros seniores da família real britânica e tentam a independência (em obrigações, moradias e até rendimentos, é o que dizem) de sua soberana avó e do eterno herdeiro: o pai, o príncipe Charles. Além dos tabloides, são muitas as biografias e recopilações sobre o que se conhece no Reino Unido como The Firm, a empresa, em letras maiúsculas. Livros que costumam oscilar entre o panegírico, a crítica feroz e a teoria da conspiração.
Um dos poucos que utiliza fontes bem confiáveis e não cai nesses extremos (ainda que, talvez, mais para o lado favorável da balança) é Diana: Sua verdadeira história em suas próprias palavras. Escrito pelo jornalista Andrew Morton em 1992, seu principal valor é que reproduz as palavras da própria princesa Diana, falecida em agosto de 1997. A obra de Morton foi muito aguardada, se transformou no livro do ano, uma autêntica bomba relógio e de vendas. Ele, à época, afirmava que não existia “nenhuma conspiração, e ela não pretende utilizar contra ninguém o que se revela no livro”. Porque o que se revelava era um dos grandes segredos escancarados dos Windsor e que mudaria o rumo da monarquia: Charles da Inglaterra há anos mantinha um romance com Camilla Parker-Bowles, sua futura mulher. Algo que fez com que aquela que ainda era sua esposa (restavam poucos meses para deixar de sê-lo) tentasse o suicídio cinco vezes. Morton tentou repetir seu sucesso com uma biografia sobre Meghan Markle em 2018, mas não obteve os mesmos números.
Muitas vezes foram os mais próximos ao núcleo da Empresa a revelar seus segredos. Algo de que a discretíssima rainha Elizabeth não gosta, afirmam as fontes sempre anônimas, secretas e impossíveis de se comprovar. Por isso ficou tão chateada por ter sido sua babá, Marion Crawford, a autora de The Little Princesses: The Story of the Queen’s Childhood, uma obra com pouca maldade e muito açúcar, que caiu no gosto do público britânico, ao falar sobre as infâncias da rainha e sua irmã com as recordações de quem as criou por 16 anos, até Elizabeth se comprometer depois com seu esposo Philip de Edimburgo. O livro foi lançado nos anos cinquenta e mesmo estando fora de catálogo ainda pode ser adquirido. A querida e fiel Crawford, que havia sido nomeada Oficial da Real Ordem Vitoriana e recebido casa e aposentadoria, perdeu tudo após a fúria da rainha.
Mas a grande bíblia para entender a família é A Família Real (The Royals, no original), 600 páginas escritas por Kitty Kelley em 1997, um dos anos mais difíceis da saga, quando Diana de Gales morreu em um acidente de carro em Paris. Apesar de não falar das duas últimas décadas do clã, é cuidadosamente documentado ao longo de quatro anos com entrevistas com membros da família, assim como empregados, amigos e parentes, além de historiadores, lordes e ladys, deputados, jornalistas... Mais de mil pessoas, como diz Kelley. Em seus primeiros meses vendeu um milhão de cópias nos EUA; nenhuma no Reino Unido: foi proibido. Talvez porque chamava sem rodeios alguns membros da saga de antissemitas e racistas e dizia que adoravam sexo “em todos os lugares: nos jardins, nas cocheiras, no iate Britannia. Talvez não tenham muito trabalho e por isso estejam obcecados pelo sexo”.
Andrew Morton, com a biografia de Meghan Markle em Londres em abril de 2018.
Os que querem uma biografia precisa e concreta de Elizabeth II podem tê-la nas menos de 300 palavras de A Brief History of The Private Life of Elizabeth II (somente em inglês) de Michael Patterson, que explica de forma austera, mas clara, passado e presente da soberana, e dá pistas do futuro sem ela. Mas os que querem imaginar com a rainha, o principal personagem dos Windsor, no final das contas, podem fazê-lo graças a Uma Real Leitora, de Alan Bennet. No romance de 2007, o dramaturgo de Leeds sugere o que aconteceria se a leitura cativasse Elizabeth II, uma leitura cada vez mais complexa, mais refinada, tanto que a faria pensar sobre sua própria posição no mundo. A ironia está presente desde o começo, quando a monarca encontra uma biblioteca móvel às portas da cozinha do palácio, assim como a sátira, a caricatura e a capacidade de mudança que as letras têm. Como a própria Elizabeth escreve: “Não se coloca a vida nos livros. A encontra neles”.
Filmes reais
Mas nada como o audiovisual para expandir uma imagem, de calidez e de frieza. Os documentários ajudaram, especialmente quando contêm vozes autorizadas a respeito. O primeiro foi o emitido pela BBC com vários depoimentos: os dos próprios membros da família real. Era o mais fofoqueiro, o realizado mais de dentro, e por isso os Windsor voltaram atrás e decidiram retirá-lo. Não voltou a ser exibido.
Uma boa leva de documentários chegou com o aniversário da morte de Diana de Gales. Em 2017 estreou The Royal House of Windsor (disponível na Netflix), com seis capítulos que tratam com profundidade a trajetória da família da abdicação de Edward VIII até o papel atual do príncipe Charles. A trajetória da vida da princesa também esteve presente em Lady Di: Suas Últimas Palavras (National Geographic, agora na Netflix), mas principalmente se destacou o criado pela rede de televisão ITV, Diana, Nossa Mãe: Sua Vida e Legado, cujo principal valor é o depoimento de Harry e William, seus filhos. Nele, os jovens dizem com integridade como foi a infância com Lady Di e como lembravam da última ligação telefônica recebida de sua mãe. Os dois (assim como seus tios por parte de mãe, o conde Spencer e lady Sarah McCorquodale) também conversaram com a BBC para Diana, 7 Dias (agora na Amazon). Na ficção, uma lânguida Naomi Watts tentou dar vida à princesa em Diana (2013, Oliver Hirschbiegel) retratando-a em sua última época, mas só conseguiu em partes.
Quem soube refletir esse momento essencial dos Windsor foi A Rainha em 2006. Quase uma década depois do acontecimento que chocou o país, a morte da Princesa do Povo, um filme se atrevia a refletir como foi vivenciado por dentro. A soberba interpretação de Helen Mirren como uma fria avó e soberana lhe rendeu vários prêmios: Globo de Ouro, Bafta, Copa Volpi, Emmy..., e o desejado Oscar.
Helen Mirren, caracterizada como Elizabeth II em 'A Rainha'.
O filme foi dirigido por Stephen Frears, mas o roteiro, a parte principal da história, era de Peter Morgan. Ele não levou o Oscar, mas ganhou o reconhecimento e aprendizagem sobre essa especialíssima família, que o faria triunfar outra década depois ao criar uma das séries mais esperadas (e caras) da Netflix: The Crown. Seus 30 episódios até agora se transformaram em um dos retratos mais fiéis jamais feitos da casa Windsor. Por vários fatores. Seus atores e principalmente atrizes: Claire Foy na 1° e 2° temporadas e Olivia Colman na 3° e próxima 4° ―serão supostamente 6 no total― são soberanas mais do que fiéis, em todas as suas facetas. Sua produção e caracterizações muito bem cuidadas, por trás das quais se vê a mão da plataforma paga. Seus tempos, perfeitamente calculados.
Mas principalmente, o que faz o sucesso da série são seus roteiros, jogando entre realidade e ficção. Fazem com que o espectador duvide, colocam que nada é preto ou branco, dão três dimensões a uma monarquia de papel. Não fica claro se Elizabeth II é uma mulher perfeitamente preparada ao cargo e disposta a assumi-lo ou alguém não tão brilhante que preferiria ter sido anônima entre cachorros e cavalos. E se nem seus membros sabem muito bem o que são e o que querem ser. A série não é monárquica e republicana. Ou talvez seja as duas coisas. Como já pedem com ironia seus muitos seguidores nas redes sociais, terá que fazer ampliações: tanto drama não cabe em só seis temporadas.
LIVROS
Diana: Sua verdadeira história em suas próprias palavras. Andrew Morton. Best Seller, 2013.
The Little Princesses: The Story of the Queen’s Childhood. Marion Crawford, 1951.
A Família Real. Kitty Kelley. Record, 1999.
A Brief History of The Private Life of Elizabeth II. Michael Patterson. Coleção Brief Histories, 2012.
SÉRIES E FILMES
The Royal House of Windsor. Channel 4, 2017. Disponível na Netflix.
Lady Di: Suas Últimas Palavras. National Geographic, 2017. Disponível na Netflix.
Diana, Nossa Mãe: Sua Vida E Legado. ITV, 2017. Disponível na HBO.
Diana, 7 dias. BBC & Sandpaper Films, 2017. Disponível no Amazon Prime Video.
Diana. 2013, dirigido por Oliver Hirschbiegel, com Naomi Watts, Naveen Andrews, Geraldine James.
A Rainha. 2006, dirigido por Stephen Frears, com Helen Mirren, James Cromwell, Alex Jennings.
The Crown. Primeira e segunda temporada, 2016 e 2017, com Claire Foy, Matt Smith, Vanessa Kirby. Terceira temporada, 2019, com Olivia Colman, Tobias Menzies, Helena Bonham-Carter. Disponível na Netflix.