Humanos que comem animais selvagens sem controle, um barril de pólvora para a saúde mundial
Especialistas advertem que controlar globalmente o consumo e comércio de produtos silvestres é praticamente impossível, e que a chave está em melhorar a forma de enfrentar as crises
Uma mulher de Camarões prepara como alimento um porco-espinho caçado na selva.JONATHAN TORGOVNIK (GETTY IMAGES)
Os morcegos, o ebola; as civetas, a SARS; os cães, a raiva; os macacos, a AIDS; as galinhas, a gripe aviária. Estes são alguns dos animais que estiveram na alça de mira quando surgiram surtos de novas enfermidades. O último alvo foi o pangolim, suspeito já descartado de ter servido como transmissor do coronavírus aos humanos. “Sempre se põe o foco nos mercados com animais vivos”, aponta Santiago Mas-Coma, catedrático de Parasitologia e presidente da Federação Mundial de Medicina Tropical. “Já foi assim com a gripe aviária, quando se investigou a origem em frangos que tinham adquirido o vírus através dos restos fecais de animais mantidos na gaiola de cima”, acrescenta.
Como resultado da crise do coronavírus, a China proibiu temporariamente o consumo de animais selvagens, uma medida que não inclui usos medicinais ou destinados à pesquisa. Os especialistas duvidam da eficácia da proibição, já adotada em crises anteriores. “A Europa é a região mais rigorosa do mundo, esqueça que isto [fiscalização] existe em outras regiões. É muito difícil controlar esse tipo de coisa num país com 1,4 bilhão de pessoas”, afirma o especialista. Um ponto de vista semelhante tem Berhe Tekola, diretor de Produção e Saúde Animal da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Cada vez que há uma crise, uma epidemia, as pessoas se aceleram e entram em pânico, e leis são geradas ou modificadas”, observa.
O controle do consumo e comércio é tremendamente difícil por três motivos: a falta de estatísticas, por não ser algo registrado; populações enormes e com tradições muito arraigadas; e a escassez de meios para aplicar a lei. Por isso, a possibilidade de ver novas doenças transmitidas de animais para humanos no futuro é muito real. “Certamente. Não existe risco zero”, afirma Tekola, taxativo.
As feiras livres e mercados onde se misturam muitos animais em duvidosas condições de salubridade geram receios quando se fala de novas zoonoses (doenças transmitidas de animais a humanos). “Você pega espécies selvagens, as põe sob uma situação de estresse e as mistura com outras. É o habitat perfeito para os vírus, que são inteligentíssimos”, indica Rikkert Reijnen, do Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal, organização presente em 40 países.
O risco não está só no consumo, mas também no comércio. “O ser humano caça animais desde o início da sua existência, isso não é novidade, mas sim as quantidades consumidas atualmente e a capacidade dos animais de viajarem de um lado para outro do globo em questão de horas”, observa Reijnen.
A ONU calcula que o tráfico de espécies protegidas movimenta a cada ano entre 8 e 10 bilhões de dólares (37 a 46 bilhões de reais). “A convenção sobre o comércio internacional de espécies ameaçadas já regula os intercâmbios entre países, o problema é que não tem jurisdição no mercado interno, e a demanda em países como a China e o Vietnã é enorme. Para nós, esta é uma oportunidade para que as leis de proteção animal sejam revistas”, salienta Gema Rodríguez, do WWF. “Já temos legislação, mas também são necessários meios para aplicá-la”, completa Reijnen.
O cachorro como iguaria
Martha Pedraja é veterinária e pesquisadora espanhola. Essa especialista estudou detalhadamente o tráfico e comércio ilegal de carne de cachorro. Isto lhe serve para entender o mercado informal no qual surgem muitas das doenças transmitidas aos humanos.
A pesquisadora se desloca metaforicamente a um mercado como os de Wuhan, para o qual todos os olhares se voltaram no início do coronavírus. “Em quase toda a Ásia, os boxes dos mercados têm uma parte visível, onde você pode comprar uma galinha. Mas há uma parte de trás onde estão as espécies proibidas pelo Governo. Quanto maior é o país e mais arraigados os costumes, mais difícil é conseguir uma mudança. Veja o caso da raiva. Parece mentira que não tenhamos conseguido erradicar uma doença que está há milênios conosco. Mas se você olhar as zonas rurais da África e Ásia, ainda há muitos lugares onde continuam comendo carne e cérebro de cachorro sem cozinhar, ou onde você encontra uma criança com uma mordida de semanas atrás que não foi ao médico”. Algumas comunidades na Nigéria, por exemplo, consideram que a carne canina é “deliciosa” e “protege contra as bruxas”.
Facão utilizado para esfolar o porco-espinho, exemplo das condições de manipulação desses alimentos.
Pedraja teve muita dificuldade para estudar o fenômeno. “Os dados oficiais são quase inexistentes, às vezes porque o consumo de determinados produtos é algo tabu, que a sociedade não quer reconhecer. Os países reconhecem que existem criações”, diz, por telefone, ao final de um dia de trabalho. Pedraja utilizou as pesquisas da organização Soi Dog, que reuniu dados sobre Pukhet, na Tailândia, e de outras entidades internacionais, como a WWF. “A defasagem entre as poucas cifras oficiais comparadas com as estimativas das ONGs que trabalham no terreno é uma loucura”, comenta.
O mesmo opina Tekola, da FAO: “Quando falamos de consumo de carne selvagem simplesmente não há dados. Os países não fornecem esta informação porque normalmente pertence ao mercado informal. E a falta de certezas leva ao pânico”. Esse especialista etíope trabalhou em muitas comunidades rurais que continuam comendo graças à caça e ao extrativismo. “Você não pode chegar como se fosse o chefe. Tem que se sentar com eles, com calma, e lhes dar argumentos. As recomendações da FAO nesse sentido são que não comam nada que tenha estado doente ou que tenha morrido por um motivo que desconhecem.”
E, como se explica o que se pode ou não comer num continente como o africano, onde 275 milhões de pessoas não têm seu alimento assegurado no dia seguinte? Resposta difícil. “Não podemos chegar e dizer a agricultores pobres: ‘Coma isto, não coma aquilo’. Que alternativa eles têm se você os proíbe de caçar? Estamos dando uma criação de porcos e galinhas em troca? Não. Então, quem somos nós para mandar qualquer coisa? Eles preferem se arriscar, mas ter algo que comer”, diz Tekola.
O consumo de produtos silvestres existe, embora seja quase impossível quantificá-lo. “Apesar das grandes lacunas de informação em nível regional e global, existem exemplos locais”, diz por e-mail Julie Belanger, especialista da FAO. O relatório intitulado O estado mundial da biodiversidade para a alimentação e a agricultura reúne uma pesquisa feita em algumas comunidades da Ásia, África e América Latina entre 2004 e 2010, na qual se concluiu que mais de 53,5% dos lares eram abastecidos com animais e plantas das matas. O relatório também cita outro estudo segundo o qual “nos povoados tradicionais de produção de arroz, as famílias comem animais aquáticos aos quais têm acesso fácil a partir dos seus campos, como caracóis, caranguejos, rãs e peixes”.
Apesar dos dados precários, o relatório se empenha em reunir diferentes estatísticas fornecidas pelos próprios países e algumas organizações internacionais que incluem plantas, animais, cogumelos e micro-organismos. Segundo seus dados, há no mundo 2.800 espécies selvagens usadas para o consumo humano. “Entretanto, estes números estão incompletos. Por exemplo, os países só registram o consumo de 21 tipos de insetos, quando sabemos que essa cifra chega a mais de 2.000”, especifica Belanger.
A rapidez na hora de compartilhar os dados num contexto global e de aplicar medidas que freiem a expansão será a chave. Assim opinam especialistas como a veterinária Pedraja: “Não acredito que as medidas adotadas bruscamente num momento de crise representem uma grande mudança, mas opino que um enfoque comum nos torna fortalece. Atualmente há muitos veterinários trabalhando pela medicina humana”.
Fonte:El País