O plebiscito para uma Assembleia Constituinte no Chile está prestes a ser adiado; a renegociação da dívida na Argentina foi adiada, deixando país à beira da moratória; também o debate sobre o aborto ficou suspenso na Argentina; na Bolívia, as eleições nacionais correm risco. As grandes manifestações populares desapareceram das ruas do Chile, da Colômbia e da Venezuela. O coronavírus está alterando a agenda dos países vizinhos do Brasil.
Foto: REUTERS/Pablo Sanhueza
Agentes de segurança controlam acesso na entrada do palácio presidencial em Santiago. 18/03/2020
Por: Márcio Resende
Correspondente em Buenos Aires, da RFI
"O coronavirus mudou totalmente a agenda política dos países da região", indica à RFI o analista político boliviano, Raúl Peñaranda. "O coronavirus ocupou a agenda e o efeito será diferente, dependendo de cada país", avança o sociólogo e cientista político chileno, Patricio Navia. "Esses efeitos podem ser transitórios e imprevisíveis. Podem tornar-se inversos ao que hoje parecem", adverte o analista político e historiador argentino, Rosendo Fraga.
Nova Constituição chilena pode ter de esperar
O plebiscito previsto para o dia 26 de abril que definirá se o país convocará uma Assembleia Constituinte está a ponto de ser adiado no Chile. À medida que avançam os contágios, mais incertezas surgem sobre a data. Governistas e opositores estão cada vez mais inclinados a adiá-la.
As principais razões são duas: o Ministério da Saúde calcula que o auge da doença possa acontecer entre as próximas oito e doze semanas e o plebiscito seria no começo desse período, tornando-se um eventual instrumento de propagação ao mobilizar milhões de pessoas.
Por outro lado, no Chile, o voto não é obrigatório. A abstenção pode ser alta, esvaziando a legitimidade do processo.
Os maciços protestos que, semanalmente, atacam o governo do presidente Sebastián Piñera também serão suspensos. Tanto porque o vírus é uma ameaça real para os manifestantes quanto porque o governo acaba de declarar o "Estado de Exceção Constitucional por Catástrofe" durante 90 dias, período que abrange a data do plebiscito.
Esse regime excepcional permite ao governo implementar o toque de recolher, restringe as reuniões em espaços públicos e limita a circulação de pessoas. Na prática, as Forças Armadas vão às ruas para garantir o cumprimento das quarentenas, impedindo as manifestações populares contra um governo cuja popularidade oscila em torno de 10%.
"No Chile, o plebiscito e as manifestações passaram a um segundo plano. Se o número de mortes se mantiver baixo, mas aumentar nos outros países, o governo Piñera terá um surpreendente renascer. Não será suficiente para virar o jogo, mas será importante na mesma", aponta Patricio Navia, professor da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.
Navia faz uma análise por comparação. No final do processo, as sociedades vão avaliar quais governos tiveram melhor desempenho e quais fracassaram tanto em matéria sanitária quanto em economia.
"Mas a crise econômica que virá será muito mais imediata e direta do que os problemas da Constituição", prevê Navia.
Argentina à beira da moratória
A crise econômica tem um alvo frágil na região. O governo argentino anunciou um pacote financeiro de ajuda para combater os efeitos nocivos do coronavírus na economia, mas, com isso, acabou com o frágil equilíbrio fiscal que pretendia exibir aos credores da dívida. Assim, a taxa de risco-país disparou a mais de 4 mil pontos, indicando que o país está, aos olhos dos credores, à beira de uma nova moratória da dívida.
O efeito colateral mais grave do coronavírus na Argentina foi ter praticamente acabado com as chances de o país ter uma renegociação tranquila da dívida. O governo tinha estabelecido o dia 31 de março como a data limite para uma renegociação. O prazo não só não será cumprido como nem mesmo houve qualquer oferta por parte do governo argentino. A Argentina combina elevada inflação com forte recessão e agora pode combinar Covid-19 com moratória.
No campo social, o governo tinha prometido enviar ao Congresso, na semana passada, o projeto de lei pela legalização do aborto, mas o Ministério da Saúde, coordenador do projeto, precisou mudar o foco e apontar contra o coronavírus.
O debate pelo aborto incluía uma série de manifestações a favor e contra que foram canceladas porque ofereciam risco de contágio.
"Na Argentina, o coronavírus pode permitir ao presidente Alberto Fernández construir a sua liderança, mas também complica a renegociação da dívida. O risco de moratória é o assunto relevante para a Argentina", sublinha Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria.
Eleições na Bolívia sob risco
As eleições nacionais de 3 de maio na Bolívia também correm risco. O governo interino da presidente Jeanine Áñez já tinha anunciado a proibição de reuniões com mais de mil pessoas. Agora, implementou toque de recolher entre as 17 horas e as 5 da manhã. A campanha política está suspensa. Os principais candidatos anunciaram que não fariam mais comícios. O único debate no país é sobre coronavírus.
"A campanha passou a um segundo plano. Foram suspensas as concentrações de militantes. Os eleitores têm pouco interesse no processo eleitoral", explica Raúl Peñaranda.
O desinteresse é de tal ponto que os candidatos não falam mais sobre as suas plataformas políticas. Passaram a explicar como os eleitores devem se prevenir contra o vírus.
"Os candidatos tornaram-se uma espécie de consultores em assuntos de saúde. É a forma que inventaram para falar sobre aquilo que interessa. Inventaram uma modalidade bem curiosa para ganhar exposição", conta Peñaranda.
O Tribunal Supremo Eleitoral confirmou a data porque uma alteração depende os legisladores que começam a discutir o assunto.
Na Venezuela, quarentena para evitar protestos
Com o preço do petróleo em forte queda, com o desabastecimento em plena corrida por estocar alimentos e com um sistema de saúde precário, a Venezuela deveria estar a ponto de explodir em reações populares.
Esse era, aliás, o plano do presidente interino, Juan Guaidó, quem tinha uma agenda para ganhar novamente as ruas em grandes manifestações populares contra o regime de Nicolás Maduro durante o mês de março. Mas o coronavírus forçou a uma mudança de planos porque as concentrações de pessoas são um terreno fértil para a propagação.
Nicolás Maduro primeiro decidiu proibir as aglomerações. A decisão foi sanitária, mas também política. Agora o país está em quarentena total. Ninguém pode sair de casa. Maduro ganha mais tempo.
"Na Venezuela, a pandemia acrescenta uma nova complicação a Nicolás Maduro devido à crise sanitária que o país já vivia", destaca Rosendo Fraga.