Com equipes reduzidas, hospitais não têm planos para poupar profissionais idosos, que fazem parte do grupo mais vulnerável diante da Covid-19. Poucos podem ficar em casa
Equipe médica na Itália.CLAUDIO FURLAN/LAPRESSE / AP
MARINA ROSSI
Faz 51 anos que o médico R.B. trabalha no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Hoje, aos 78 anos e diante da maior crise de saúde pública da história recente do Brasil, ele acompanha a pandemia do coronavírus longe do hospital. Embora não tenha nenhuma comorbidade, sua idade o coloca no grupo mais vulnerável diante dos riscos da Covid-19. De casa, por telefone, ele conta sobre o dilema de ter de se afastar do trabalho. “Os colegas mais jovens me falaram para eu ficar em casa. E, nessa idade, a gente já está um pouco fora da linha de frente, então eu poderia, sob esse ponto de vista de medicina prática, me afastar”, diz. “Mas fica uma situação chata. Somos em 30 colegas na minha equipe, eu sou o mais velho, mas muitos tem mais de 60. Se eu me coloquei na situação de médico ativo, eu não poderia recuar nessa hora”.
A situação do médico, que preferiu ter sua identidade preservada, é um dos dilemas que a pandemia da Covid-19 trouxe à tona. Muitos profissionais da saúde são, ao mesmo, tempo fundamentais neste momento, mas também se encontram dentro do grupo de risco da doença. E o caso de R.B. é uma exceção, já que a maioria —seus próprios colegas, inclusive— ainda está no dia a dia dos hospitais.
Eder Gatti, infectologista do Hospital Emilio Ribas e presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, explica que essa situação é um dos reflexos da ausência de novos concursos para a contratação na área da Saúde. “Não há novos concursos para a Saúde do Estado de São Paulo desde 2015. Temos então um quadro funcional em fim de carreira, e essa é uma realidade muito parecida na Prefeitura também”, diz. “Agora o Governo se vê nesse dilema: uma penca de profissionais com mais de 60 anos, que se colocam em risco por trabalhar na linha de frente com uma doença altamente contagiosa”.
Na Itália, a atuação nessa linha de frente já levou ao óbito de ao menos 25 médicos em decorrência do coronavírus e mais de 90 estão infectados. Em São Paulo, a reportagem questionou a Prefeitura e o Governo do Estado sobre quantos profissionais da saúde estão dentro do grupo de risco e como o poder público está lidando com a situação, mas não recebeu resposta até a conclusão desta reportagem. Por ora, a medida tomada vem no sentido contrário: profissionais da saúde que estavam de férias, incluindo idosos, foram todos convocados para voltar ao trabalho. Medidas assim mostram que o poder público, nas três esferas, se vê em uma corrida contra o relógio para contratar novos profissionais, incluindo a ideia do Governo Federal de acelerar a formatura de estudantes de medicina para que eles já possam atuar nessa crise. Até o momento, um plano de resguardo para os profissionais mais mais vulneráveis não foi detalhado.
Os números apresentados dia após dia no Brasil e no mundo mostram que a maioria dos óbitos registrados em decorrência do coronavírus é de idosos. São Paulo, além de ser o epicentro desta pandemia no país, onde a primeira notificação e a primeira morte ocorreram, ainda incluiu mais um caso emblemático nessa esteira: na segunda-feira, o infectologista David Uip, 67 anos, coordenador do centro de contenção do coronavírus no Estado, testou positivo para a doença e foi afastado do trabalho. Na tarde desta terça-feira, Wanderson de Oliveira, secretário de vigilância em Saúde, afirmou que muitos profissionais da saúde e da segurança pública estão afastados, não por precaução, mas porque já estão sob suspeita da doença. Por isso, a pasta pretende realizar testes rápidos especialmente nesse público. “Há muitos profissionais de saúde e segurança em isolamento que precisam retornar ao trabalho, com segurança”, disse.
A equação, no entanto, não é fácil de se resolver. “O ideal seria remanejar esses profissionais [idosos] para a retaguarda, não deixar no atendimento direto”, diz Gatti. Mas a realidade é diferente. “Dos cinco médicos da minha equipe, dois têm entre 30 e 40 anos, uma tem entre 45 e 50 anos e duas têm mais de 60 anos”, contabiliza. “Ontem mesmo, duas médicas se afastaram porque estavam com sintomas respiratórios. Tivemos que encontrar um plantonista extra que, no fim, era um médico de 62 anos”.
Para o médico José Luiz Gomes do Amaral, professor da Escola Paulista de Medicina e presidente da Associação Paulista de Medicina, ainda que o número de servidores seja insuficiente, é preciso pensar estrategicamente neste momento. "Se hoje o país entra em guerra, você convoca os recrutas para o front e chama os reservistas para deixá-los em prontidão”, afirma. “Talvez valesse a pena rapidamente identificar esses profissionais [mais vulneráveis] e realizar um recrutamento emergencial para substitui-los”, sugere.
Essa foi a estratégia adotada pelo Hospital Sírio Libanês, segundo sua assessoria de imprensa. O hospital afirma que os profissionais de saúde que se encontram no grupo de risco “não estão na linha de frente do atendimento à população”. E que “aqueles cujo trabalho permite, estão fazendo home office. Os demais estão trabalhando em áreas que não têm contato com os pacientes suspeitos ou que estão com a Covid-19”.
Seja como for, não é uma situação fácil nem para os gestores ou administradores, nem para os profissionais. “É um sentimento ruim, porque nem perto do front eu estou. Estou fora”, diz o médico R.B. “Não é agradável. Não tenho concentração para ler, por exemplo. A tendência é ficar mais depressivo mesmo. Definitivamente não é férias”.