Ultraortodoxos, que são um décimo da população, concentram um terço dos casos de coronavírus
JUAN CARLOS SANZ / EL PAÍS
Jerusalém - 26 ABR 2020
Em Bnei Brak, ainda é recordado o concorrido funeral de Aharon Shteinman, líder espiritual askenazita, que morreu em 2017, aos 104 anos. Quase 200.000 ultraortodoxos se despediram do gadol hador, o mestre judeu mais reverenciado da sua geração e chefe do conselho de sábios de influentes partidos ultrarreligiosos de Israel, neste religioso subúrbio da profana aglomeração urbana de Tel Aviv. Em 30 de março deste ano, duas semanas depois da imposição do confinamento da população por causa da pandemia, quatro centenas de seguidores da seu yeshiva (escola talmúdica) foram na mesma cidade ao enterro do rabino Tzvi Shenkar. As imagens do nutrido cortejo fúnebre esgotaram a paciência dos setores laicos da sociedade hebraica, enclausurados em suas casas enquanto os haredis (tementes a Deus) violavam as restrições sanitárias.
Três dias depois, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu mandou o Exército e a polícia para isolar com postos de controle os acessos a Bnei Brak, cujos 200.000 habitantes —famílias pobres com uma média de sete ou oito filhos— se amontoam em apenas sete quilômetros quadrados.
Embora representem pouco mais de uma décima parte dos nove milhões de habitantes de Israel, os ultraortodoxos concentram um terço dos 15.000 casos de coronavírus registrados até agora. Depois do foco de contágio inicial no centro do país, as autoridades enclausuraram também os bairros ultrarreligiosos onde vivem 250.000 dos 900.000 habitantes de Jerusalém e que respondem por 75% dos casos positivos do vírus. Além de sofrer com maior intensidade a praga da pandemia, os haredis se viram marcados pelo estigma social de ignorar as medidas de contenção.
“São acima de tudo famílias muito pobres e numerosas, que vivem em casas muito pequenas”, observa Fleur Hassan-Nahoum, vice-prefeita de Jerusalém, numa tentativa de estender pontes aos eleitores religiosos, cujos partidos sustentam o governo municipal conservador. Sua Prefeitura distribui 20.000 refeições diárias aos lares mais necessitados destas comunidades, onde uma grande parte dos homens se dedica exclusivamente ao estudo das sagradas escrituras e à oração, enquanto são as mulheres (75% de taxa de atividade) que sustentam a economia familiar com empregos precários e ajudas sociais.
“Estes bairros não foram fechados por serem ultraortodoxos, e sim porque são as zonas com maior taxa de contágios”, enfatiza a prefeita-adjunta para Relações Internacionais. “As disputas entre líderes religiosos judeus sobre as normas sanitárias deixaram muitos de seus seguidores sem orientação”, reconhece Hassan-Nahoum.
Os contágios entre os ultrarreligiosos se multiplicaram a partir de 10 de março, com a celebração do Purim, o Carnaval judaico. Enquanto os responsáveis sanitários já advertiam aos israelenses sobre a necessidade de manter o distanciamento social, centenas de milhares de haredis participavam de festas com aglomerações.
“Um mês mais tarde, durante as festividades da Páscoa judaica, evitou-se cometer o mesmo erro e se decretou um toque de recolher geral”, destaca a vice-prefeita, que afirma haver uma paulatina volta à normalidade após a retirada das forças de segurança. Nas ruas de Mea Shearim, o maior bairro ultraortodoxo de Jerusalém, acata-se o uso de máscaras, declarado obrigatório pelo Governo sob multa de 200 shequels (317 reais). Enquanto isso, o serviço de emergências sanitárias Estrela de Davi Vermelha instalou um centro móvel de testes neste bairro com o apoio de tropas do Comando da Frente Doméstica, uma unidade militar voltada para emergências, com intérpretes em iídiche (dialeto judaico centro-europeu).
O cordão sanitário erguido em Bnei Brak e nos bairros da Cidade Sagrada acaba de ser transferido para Beit Shemesh, outro feudo ultraortodoxo na província de Jerusalém, com 320 casos positivos entre 62.000 residentes, frente aos 202 na laica Tel Aviv (450.000 habitantes).
Os judeus ultrarreligiosos se agrupam em duas grandes correntes em Israel. A askenazita (centro-europeia), com ramos hassídico e lituano, e a sefardita, ou oriental. A primeira tem representação política através da União pela Torá e o Judaísmo (UTJ), e a segunda pelo partido Shas. Ambas as forças se nutrem do disciplinado voto de seus adeptos sob as diretrizes dos rabinos.
O ministro da Saúde ultrarreligioso antecipa sua renúncia
Após passar cinco anos sustentando o poder de Netanyahu, eles aspiram a manter o generoso financiamento público de seus centros educacionais e sociais sob a nova coalizão, pactuada pelo primeiro-ministro conservador com o centrista Benny Gantz.
O ministro da Saúde do governo interino, o ultraortodoxo da UTJ Jacob Litzman, que comanda a estratégia de combate ao coronavírus, tornou-se alvo das críticas ao ter dado positivo no exame após assistir à reza coletiva em uma sinagoga, apesar da proibição imposta por seu próprio departamento. Litzman anunciou neste sábado que vai renunciar à pasta para assumir o Ministério da Moradia no novo Gabinete, conforme antecipa a imprensa local.
No rito judeu lituano que Litzman segue, muitos responsáveis religiosos consideram que o estudo da Torá protege a comunidade judaica de qualquer perigo. Dezenas de milhares de seguidores de rabinos radicais exigiram nesta semana a reabertura das yeshivas, num contexto em que o Governo aplica um plano de abrandamento das medidas de contenção e recuperação gradual da atividade econômica.
“A Administração e os líderes espirituais compartilham a responsabilidade de não ter preparado à comunidade haredi para os riscos da pandemia”, afirma o antropólogo Ben Kasstan, da Universidade Hebraica de Jerusalém, ao analisar o estigma social que recaiu sobre os temerosos a Deus nesta crise sanitária. “Sua taxa de infecções foi desproporcional”, observa em um estudo publicado pelo jornal Haaretz, “e muita gente os acusa de causarem um grave prejuízo à sociedade ao ignorarem as restrições ditadas durante a pandemia”.