Por Euro Bento Maciel Filho
Sem dúvida, vivemos tempos difíceis. O novo coronavírus provocou verdadeira revolução na nossa forma de viver e de enxergar o mundo.
Em meio a tantas transformações, a tecnologia tornou-se grande aliada para que as pessoas, vivendo em isolamento social, pudessem se comunicar e continuar levando suas vidas e seus negócios adiante.
É bem provável que muitos desses recursos tecnológicos, os quais, inicialmente, passaram a ser usadas como medidas de exceção, tornem-se “regra” após a pandemia.
Nesse contexto, cumpre dizer que a atuação do Poder Judiciário, em todas as suas esferas e instâncias, sofreu profundo abalo com a pandemia. Afinal, de uma hora para a outra, audiências foram canceladas, prazos foram suspensos, fóruns e tribunais ainda permanecem fechados.
Contudo, como bem define a nossa Constituição Federal, “a atividade jurisdicional será ininterrupta” (art. 93, inciso XII) e, além disso, é essencial. Logo, apesar da pandemia, faz-se necessário retomar as atividades judiciais (sobretudo as audiências e os julgamentos), porém, com procedimentos rígidos de segurança. Ocorre que, para tanto, é preciso investir e adotar tecnologias mais avançadas.
Com o retorno paulatino das atividades jurisdicionais, é fato que “novas” ferramentas foram introduzidas ao dia a dia forense. Abruptamente, todos que atuam junto ao judiciário, viram-se compelidos a se adequar às inovações tecnológicas e, também, a seguir os inúmeros provimentos, comunicados, resoluções etc, baixados sem muita uniformidade pelos mais diversos Tribunais do País.
Nessa toada, buscando compatibilizar a segurança de todos com a necessidade de termos uma justiça atuante, foi preciso estabelecer uma nova forma para permitir a realização dos atos processuais, em substituição ao “antigo” modelo presencial. É aí, então, que as audiências por “videoconferência” ganharam força e espaço.
É bom dizer, desde logo, que a videoconferência não é algo novo na nossa legislação processual, afinal, ao menos no processo penal, o uso daquele recurso possui expressa previsão legal desde a Lei 11690/2008, e, diga-se, sempre foi tratado como uma medida de absoluta excepcionalidade.
Entretanto, como o molde das audiências de videoconferências previsto na nossa legislação foi pensado para um contexto de normalidade, ou seja, tudo foi desenhado conforme a ideia de fóruns abertos e em pleno funcionamento, contando com a presença física do juiz e das partes (Acusação e Defesa), é certo que esse recurso tecnológico precisou sofrer algumas alterações para que pudesse ser utilizado nesses tempos de pandemia.
Aqui, insta mencionar que, ao menos na seara processual penal, a videoconferência atualmente utilizada, cuja base legal está em Provimentos e Portarias, não se adequa às hipóteses restritas da lei processual penal (art. 185, §2º, e 222, §3º, ambos do C.P.P.). Com efeito, a bem da verdade, o “novo” modelo arranha a legalidade e fere o devido processo legal.
De toda forma, ainda que discutível a sua legalidade, fato é que, para a realização das audiências nesse novo formato, é preciso que as partes, testemunhas e juiz se comuniquem pela internet, simultaneamente, como se estivessem participando de uma “reunião” virtual. Por isso, plataformas como “Zoom”, “Webex”, “Google meet” e “Microsoft teams” passaram a ser usadas, sem regras uniformes e parametrizadas, pelo poder judiciário.
E, para o efetivo funcionamento daquela ferramenta, é preciso que as Partes/testemunhas informem ao juízo os e-mails e telefones celulares.
Contudo, por mais que o fornecimento daqueles dados seja necessário (sobretudo o e-mail), é forçoso reconhecer que a ideia de ter tanto o número do seu telefone celular quanto o e-mail privativo estampados no bojo de um processo não é nada confortável. Impende mencionar que tanto um quanto o outro são dados eminentemente pessoais, os quais não podem ser revelados (e expostos) da forma como tem sido determinado pelo Poder Judiciário.
Partindo do princípio de que os processos tramitam, como regra, sob o signo da publicidade, como pode o Juiz assegurar que aquele e-mail ou telefone permanecerá restrito aquele processo?
A divulgação de dados pessoais (aí incluindo-se e-mail e telefone) é um grande facilitador para tornar alguém vítima de golpes e estelionatos. É público e notório que as fraudes cibernéticas são, em boa parte, realizadas, justamente, por intermédio da invasão de e-mails e telefones celulares. Nesse sentido, partindo do princípio de que os processos judiciais devem ser públicos, não é mesmo nada agradável ter o seu e-mail pessoal e o número do seu telefone celular exposto a quem quiser ver.
A questão ganha ainda mais relevância quando se trata dos dados das testemunhas. Afinal, como bem se sabe, sobretudo nas lides penais, é muito comum que as pessoas tenham medo de comparecer em Juízo para cooperar com a Justiça. Imaginem o quão perigoso pode ser à testemunha ter os dados do seu e-mail particular e o número do seu telefone celular devidamente estampados no bojo de um processo penal qualquer, expostos a quem quiser ver.
Positivamente, essa imposição fere a intimidade, na exata medida em que é direito do cidadão informar seus dados pessoais (aí incluindo-se e-mail e celular) a quem bem entender. Nesse ponto, compelir alguém a apresentar seus dados pessoais nos autos de um processo judicial qualquer (os quais, por regra, são públicos), parece ferir os mais comezinhos princípios ligados à proteção da intimidade.
Realmente, por mais que a sociedade atravesse um período de absoluta excepcionalidade, é preciso considerar que as garantias constitucionais e o direito à intimidade não podem ser mitigados desta forma tão violenta.
Como se tudo isso não bastasse, é importante mencionar que esse dever, curiosamente, tem sido imposto apenas aos advogados e testemunhas, pois, até onde se tem visto, nem os Membros do MP, nem os Magistrados, estão sendo instados a informar os seus dados pessoais nos autos. Ora, e a paridade de armas? E a isonomia?
Uma vez que todos participarão da audiência de forma virtual, ou seja, fora do ambiente físico do Fórum, é evidente que aquela obrigação deve ser imposta a todos, não apenas a uma das partes.
Se a prestação jurisdicional é uma atividade típica, essencial e exclusiva do Estado, não cabe ao particular ter tal ônus. Cabe, sim, à Administração Pública desenvolver uma ferramenta mais adequada e consentânea às garantias constitucionais do cidadão, para assim não expô-lo a constrangimentos e riscos desnecessários em relação a sua intimidade e, quiçá, até mesmo à própria vida.
Já que a tecnologia está aí para nos servir, é urgente repensar essa nova forma estabelecida para a audiência por videoconferência. Do jeito que tudo está sendo realizado, o Estado está colocando nas costas do cidadão (e do advogado) mais um injusto fardo a ser carregado.
Euro Bento Maciel Filho é mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Também é professor universitário, de Direito Penal e Prática Penal, advogado criminalista e sócio do escritório Euro Maciel Filho e Tyles – Sociedade de Advogados.
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Carolina Lara
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