Erupções solares podem golpear a Terra e ter graves consequências para a humanidade se não estivermos preparados
PATRICIA SÁNCHEZ BLÁZQUEZ|PABLO G PÉREZ GONZÁLEZ
EL PAÍS / 25 JUL 2020 - 11:28 BRT.
A imagem mais próxima já feita do Sol / AFP
A cada segundo, no centro do Sol, 700 milhões de toneladas de hidrogênio se transformam em 695 milhões de toneladas de hélio mediante fusão nuclear. A diferença de massa, equivalente a 15 arranha-céus como o Empire State, vira energia segundo a famosa equação de Einstein, E=mc2. Esta energia é a que faz o Sol brilhar e a responsável por, mesmo a 150 milhões de quilômetros de distância, recebermos o seu calor.
A energia gerada no núcleo do Sol é transportada ao exterior e às camadas mais externas e menos densas. Quando recebem o calor de abaixo, começam a ebulir. Isto cria enormes correntes de gás quente que viajam centenas de milhares de quilômetros, levando o calor gerado no centro para a superfície, do mesmo modo como ao fervermos água em uma chaleira no fogão. Devido à alta temperatura, os elétrons dos átomos são separados do seu núcleo, por isso o gás do Sol é uma sopa de partículas carregadas, o que chamamos um plasma. Quando uma partícula carregada está em movimento, ela gera um campo magnético, de modo que estas correntes de plasma funcionam como um dínamo e levam também o campo magnético à superfície.
Os campos magnéticos não costumam ser tão ordenados como o da Terra, pois a rotação do Sol é mais rápida no Equador (25 dias) do que em latitudes médias (28 dias). Sim, o Sol não é como uma pião, cuja rotação é uniforme; conforme nos afastamos do Equador, o material vai “ficando atrasado”, anda mais devagar. Por isso, as linhas de campo magnético se retorcem e se enredam umas com as outras, impedindo em alguns casos os movimentos do gás, que fica confinado (uma palavra muito na moda e que se usa muito em física). Como resultado visível do fenômeno magnético, aparecem regiões mais frias e escuras na superfície do Sol, que chamamos de manchas, que seriam as zonas onde os tubos de fluxo magnético afloram à superfície. As manchas sempre aparecem em pares, assim como acontece com os polos de um ímã.
Embora seja famosa a disputa travada entre o jesuíta Christopher Scheiner e o astrônomo florentino Galileu Galilei pela prioridade do descobrimento das manchas no Sol, o fato é que o primeiro registro conhecido delas aparece no Livro das Mutações (I Ching, 易經), escrito por volta de 1200 a.C.. Este foi o primeiro dos múltiplos registros que os astrônomos chineses e coreanos realizaram, fundamentalmente por encomenda do imperador, que os usava para realizar presságios. Na cultura asteca, onde se adorava ao deus sol, existem registros indicando como seu rosto aparece “bicado” pela varíola, o que pode ser uma indicação destas manchas. Também no Ocidente as manchas foram observadas muito antes, mas a concepção aristotélica do universo como imaculado e perfeito, depois adotada pela Igreja, fez que a ideia de um Sol manchado fosse considerada uma heresia. Desde meados do século XIX sabemos que as manchas aparecem, se tornam mais abundantes e desaparecem em períodos de 11 anos, o chamado ciclo de atividade solar, no qual o campo magnético global do Sol troca de polaridade (os polos norte e sul se invertem).
Como as partículas carregadas respondem à presença de um campo magnético, a acumulação de plasma nos pontos onde o campo magnético aflora às vezes pode ser observada na forma de imensos arcos de fogo que se estendem por centenas de milhares de quilômetros. Esses arcos eventualmente se tornam instáveis e podem chegar a se romper, liberando toda a imensa energia acumulada neles no que chamamos de uma ejeção de massa coronal. Estes eventos lançam partículas carregadas a velocidades muito altas, capazes de viajar, em alguns casos, a distância da Terra ao Sol em menos de um dia. Quando chegam à Terra, a atmosfera absorve a radiação e as partículas são desviadas pelos campos magnéticos terrestres, a chamada magnetosfera, e seguem a trajetória de suas linhas de campo, dirigindo-se para os polos da Terra, onde acabam penetrando e interagindo com os gases da atmosfera e criando as belas auroras polares.
Entretanto, se uma ejeção de massa coronal for suficientemente grande, pode deformar a magnetosfera terrestre, dando lugar a fenômenos como o ocorrido em 1º de setembro de 1859, o chamado evento de Carrington. Às 11h18 daquele dia, Richard Carrington estava fazendo esboços das manchas solares quando observou uma imensa eclosão luminosa que parecia sair de dois pontos do grupo de manchas. Dezessete horas mais tarde, uma onda de auroras boreais transformou a noite em dia em toda a América do Norte, chegando até a Colômbia.
Felizmente, a única tecnologia moderna já em uso naquela época era o telégrafo. Estes falharam em todo o mundo, causando faíscas nas linhas e ateando fogo a alguns escritórios, mas sem causar males maiores. Entretanto, na sociedade em que vivemos hoje as correntes elétricas produzidas nestes eventos podem chegar a afetar os satélites de comunicação e navegação e inclusive a queimar os transformadores de alta tensão, nos deixando sem abastecimento elétrico. Em 2012, a Terra escapou por pouco de uma ejeção de massa coronal tão poderosa como a de 1859. Se a tempestade solar acontecesse uma semana antes, teria nos atingido em cheio, causando danos nos sistemas eletrônicos avaliados, só nos Estados Unidos, em até 2,6 trilhões de dólares (13,4 trilhões de reais), sendo necessários vários anos para a sua reparação total.
Mas ainda há outras (potenciais) más notícias. Uma publicação de 2012 descobriu que estrelas similares ao Sol podem ter superfulgurações, muito mais energéticas que o evento de 1859. Se estas tempestades nos apanharem despreparados, as consequências podem ser catastróficas. Dependemos da eletricidade para tudo. Uma falha no sistema de fornecimento significaria que não teríamos luz, computadores, comunicações, água corrente. Haveria desabastecimento nos supermercados, e a comida apodreceria por não poder ser refrigerada. Além disso, devido à falta de eletricidade, seria complicado voltar a construir o sistema de suprimento. É difícil predizer os danos totais que um destes eventos causaria em nossa sociedade, mas cedo ou tarde saberemos, é só questão de tempo. Há filmes sobre isso, pode acontecer, estamos avisados! – tanto quanto com o que estamos vivendo agora.
A missão Solar Orbiter (SolO), uma colaboração entre as agências espaciais europeia e norte-americana (ESA e NASA, respectivamente) enviou há alguns dias as imagens do Sol mais próximas já obtidas. Um dos objetivos desta missão é entender melhor os ciclos de atividade solar, justamente para podermos nos precaver deles. Esperemos que estes esforços nos salvem dos presságios do imperador Wang Mang, que dizia em relação às manchas solares: “São uma anormalidade e só podem estar indicando a chegada de catástrofes”.
Patricia Sánchez Blázquez é professora titular na Universidade Complutense de Madri (UCM).
Pablo G. Pérez González é pesquisador do Centro de Astrobiologia, ligado ao Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha e ao Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial (CAB/CSIC-INTA).