A reforma judiciária será votada nesta quinta-feira (27) no Senado, onde o governo tem maioria. Juristas e analistas coincidem que o projeto foi feito sob medida para a vice-presidente Cristina Kirchner livrar-se dos processos por corrupção que a visam.
Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires
Apesar das urgências em matéria de Saúde e de Economia, o Senado argentino vai debater a partir das 14 horas desta quinta-feira (27) de um assunto fora da agenda dos argentinos, mas prioridade para a vice-presidente, Cristina Kirchner: a reforma judiciária.
"Todos coincidem que é necessária uma reforma no sistema Judiciário contra a impunidade. O problema é que o sentido desta reforma vai na direção contrária. Cada medida que o governo tomou desde que assumiu foi para garantir a impunidade de Cristina Kirchner e esta reforma deixa explícito esse objetivo", explica à RFI o jurista e sociólogo, Roberto Gargarella, uma referência no país.
Até agora, nenhum jurista, juiz, procurador ou acadêmico conseguiu defender a reforma, considerada sob medida para Cristina Kirchner livrar-se de condenações por corrupção. Além disso, o projeto impõe um artigo que significa, na prática, censura à imprensa.Controle do Jornalismo
O artigo que inibe as investigações do jornalismo é motivo de preocupação da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) que alertou sobre "a cláusula impregnada de intencionalidade política e que evidencia uma represália que visa amordaçar a função de informar, criticar, opinar, denunciar e fiscalizar aquilo que cabe à imprensa numa democracia".
O artigo em questão determina que "os juízes deverão comunicar qualquer tentativa de influência nas suas decisões por parte de poderes políticos, econômicos ou midiáticos, membros do Poder Judiciário, Executivo ou Legislativo, amizades ou grupos de pressão de qualquer índole, e solicitar as medidas necessárias para o seu resguardo".
Ao incorporar o conceito de "midiático", o juiz que interpretar que as críticas da Impressa são uma forma de pressão, poderá denunciar e processar jornalistas e veículos de comunicação.
"O texto do artigo em questão é extremamente vago, permitindo um ampla interpretação do que seria uma pressão. É nessa amplidão que se esconde o perigo. Qualquer juiz pode denunciar um jornalista que passará a responder a um processo. A cláusula leva o jornalista a uma auto-censura para não se meter no transtorno de um processo", avalia o jornalista e analista político, Joaquín Morales Solá, um dos mais conceituados do país.
"Durante o governo anterior de Cristina Kirchner (2007-2015), o jornalismo e a Justiça viveram sob uma forte ofensiva. Essa frente de batalha está de volta", conclui.
Protesto contra acumulação de poder
A votação no Senado será virtual. Mesmo assim, do lado de fora do Congresso, uma manifestação contra a intenção do Governo de controlar o Judiciário e em defesa das instituições prepara-se para exibir resistência popular à Reforma.
Tudo indica que, apesar do protesto, o texto será aprovado, já à noite, pelo Senado, onde o Governo tem maioria de legisladores. O próximo passo será a Câmara de Deputados, onde a oposição promete impedir que o Governo consiga os 11 votos que lhe faltam.
A reforma do Judiciário consiste em diluir o poder dos atuais 23 tribunais penais, duplicando essa quantidade. É nesses tribunais que se encontram os processos contra Cristina Kirchner por corrupção.
No total, a reforma cria 316 novos cargos que, somados aos concursos já em andamento, implicarão que o governo possa indicar quase 700 nomes para altos cargos do Judiciário, uma cifra que duplica a atual. Com isso, o governo poderá ter uma maioria de juízes aliados.
Por outro lado, avança também um Conselho Consultivo integrado por onze juristas para propor alterações no Supremo Tribunal, ampliando o número de membros, também designados pelo governo. Dos onze escolhidos, oito estão ideologicamente próximos do governo.
"Sem dúvida, é uma tentativa de controlar o Supremo Tribunal e garantir a impunidade. Estão todos os sinais sobre a mesa. Uma bateria impressionante de medidas inéditas, todas na mesma direção", aponta o jurista Roberto Gargarella.
"Além de salvar-se, o outro objetivo de Cristina Kirchner é vingar-se do governo anterior. Atingir os ex-membros do governo de Mauricio Macri, além do próprio. Esses novos juízes próximos, indicados a dedo, ficariam com os processos que se abririam contra os inimigos", adverte Gargarella.
Mordaça às empresas de comunicação
Enquanto foi presidente (2007-2015), Cristina Kirchner manteve um duro embate contra a imprensa crítica. Em 2009, impulsionou uma Lei de Meios, chamada de Lei Mordaça, cujo principal alvo era o Grupo Clarín.
A lei fora aprovada com o objetivo oficial de incentivar a pluralidade de vozes e de evitar a concentração dos meios de comunicação, mas com a finalidade encoberta de controlar e de perseguir as empresas de comunicação críticas ao governo.
No primeiro mês de mandato, o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), anunciou "o fim da guerra do Estado contra o jornalismo" e modificou os artigos que desestimulavam investimentos, limitavam a ação das empresas, impediam a sustentabilidade econômica dos veículos de comunicação e inibiam a liberdade de expressão.
No sábado passado, no entanto, o governo argentino, agora com Cristina Kirchner a impor a sua agenda a partir da Vice-Presidência, decretou o congelamento de tarifas de celular, de Internet e de TV paga.
Além disso, decidiu também que esses serviços passam a ser "essenciais e estratégicos" e que qualquer futuro aumento será decidido pelo Estado num país com mais de 50% de inflação anual.
As contas como alvo
Para os críticos, o governo relança a guerra contra as empresas de comunicação através do controle de tarifas.
"O governo encontrou uma nova maneira de regular os meios de comunicação. Agora aponta contra as contas das empresas de comunicação, todas vinculadas com empresas de tecnologia", advertiu o jornalista e analista político, Marcelo Longobardi.
O decreto afeta a livre concorrência entre grupos de comunicação, especialmente o Grupo Clarín que, além do principal jornal do país, é dono de empresas de telefonia móvel, de Internet e de TV paga, todas plataformas por onde distribui conteúdo jornalístico.
As empresas afetadas alertaram que a intervenção do Estado no setor inibe os investimentos em infra-estrutura e pode afetar a qualidade do serviço.
"Tamanha mudança de regras produz um profundo impacto negativo e põe um freio para continuar a desenvolver o acesso e a cobertura nos serviços de Internet, telefonia móvel e TV paga", publicaram em conjunto todas as empresas do setor.
"O governo aspira a uma maior regulação. Por trás de tudo, o Grupo Clarín. O objetivo do presidente Alberto Fernández é afetar o negócio e os rendimentos da empresa", afirma o jornalista e analista político, Carlos Pagni, uma referência na Argentina.
"Para o governo, as críticas, as mobilizações e os protestos são, na verdade, gerados pelos meios de comunicação, sobretudo pelo Grupo Clarín. Fernández acredita, como acreditava Cristina, que por trás dos problemas da sociedade estão os meios de comunicação", indica Pagni.