O pedido de demissão nesta terça-feira (8) do consultor jurídico-chefe do governo britânico, Jonathan Jones, aumentou as desconfianças de que o Reino Unido pode estar querendo roer a corda sobre as bases do Brexit que já havia acertado com a União Europeia (UE) no ano passado. Especialistas avaliam que essa seria a pá de cal para uma separação amigável. Nada pior do que mudar as regras do jogo durante uma partida em andamento.
Por Vivian Oswald, correspondente da RFI em Londres
É assim que europeus, mercados e a classe política britânica — inclusive parte dos aliados do governo do primeiro-ministro Boris Johnson — estão vendo a última cartada de Londres. Pelo segundo dia consecutivo, o nervosismo tomou conta do mundo financeiro, que já considera cada vez maiores as chances de um divórcio litigioso. A cotação da libra esterlina caiu 1,6% em relação ao dólar nesta terça-feira (8). A expectativa é a de que um Brexit sem acordo imporá ainda mais incertezas sobre a economia britânica.
O foco do problema está no fato de a equipe de Boris Johnson estar preparando uma lei que, se aprovada, pode rescrever o que foi combinado com Bruxelas sobre o status da Irlanda do Norte, uma das questões mais complicadas da novela do Brexit. Até ontem, a versão oficial era a de que o documento traria apenas esclarecimentos para itens específicos do acordo.
Mas a saída de Jones, como teriam afirmado à mídia local interlocutores próximos, é a confirmação de que ele não ficou satisfeito com a decisão que veio de cima. A carta do consultor não entra em detalhes sobre os verdadeiras motivos da sua decisão. Ele é o sexto alto funcionário da burocracia britânica a se afastar este ano por entrar em rota de colisão com a equipe de Johnson.
Ainda nesta terça-feira Brandon Lewis, ministro responsável pela Irlanda do Norte dentro do governo admitiu que o texto “descumprirá uma lei internacional”. Ele reconhece que a medida iria contra o teor do tratado, mas de uma “maneira específica e limitada”.
Credibilidade internacional do país em risco
Mais tarde, a ex-primeira ministra Theresa May declarou que a mudança põe em jogo a credibilidade internacional do Reino Unido. A parlamentar conservadora afirma que o governo estaria mudando o acerto firmado com os europeus no ano passado. Ela perdeu o posto para o também conservador Boris Johnson justamente por não conseguir pacificar a questão da Irlanda do Norte no acordo que negociava para o Brexit.
“O governo do Reino Unido assinou um acordo de saída (da UE) que inclui o protocolo da Irlanda do Norte”, disse. Ela explicou que o parlamento votou este entendimento, transformando-o em lei, e que, agora, o governo estaria mudando parte deste acordo.
“Como o governo pretende garantir a futuros parceiros internacionais que o Reino Unido é confiável no que diz respeito ao cumprimento de obrigações legais dos acordos que assina?”, atacou.
Para o principal líder da oposição, o trabalhista Keir Starmer, o governo está reabrindo velhos argumentos que já haviam sido resolvidos, quando “o foco deveria ser fechar um acordo (comercial) com a UE”. Pelo Twitter, Ed Davey, líder dos Liberal Democratas afirmou que “descumprir um tratado internacional trará danos incalculáveis para a nossa reputação no exterior, vai nos fazer mais pobres e tornar cada vez mais difícil resolver crises globais como a emergência climática”.
Última tentativa para acordo com UE
A repercussão não poderia ter sido pior. A UE já deixou claro que, se a ideia é mudar o que havia sido acertado, não há conversa sobre o acordo comercial. Nessa segunda-feira (7), o negociador chefe do bloco, Michel Barnier, desembarcou em Londres para a oitava rodada de tratativas. Esta pode ser também a última tentativa de se chegar a um acordo final.
Os europeus se dizem convencidos de que é possível um entendimento, mas avisam que estão preparados para o pior. No lado britânico, o primeiro-ministro Boris Johnson já disse que, se não houver um acordo até 15 de outubro, o país deixará a mesa de negociações.
A Irlanda do Norte é parte do Reino Unido, mas tem uma fronteira terrestre com a República da Irlanda, que é parte da UE. Hoje, não há nenhum tipo de controle entre os dois lados. E isso foi fundamental para que se pacificasse a Irlanda, que foi palco de muita violência até os acordos da Sexta-feira Santa, de 1998. Como tirar o Reino Unido do espaço aduaneiro europeu mantendo a fronteira da Irlanda do Norte aberta para a República da Irlanda? Essa é uma das grandes sinucas do Brexit. Até agora, era ponto pacífico.
A menos de quatro meses de o Reino Unido deixar definitivamente a UE, fica cada vez mais complicado para a equipe de Johnson encontrar uma saída tranquila para o divórcio. Sob a ameaça de uma segunda onda de contaminações pelo novo coronavírus, os britânicos temem que deixar o bloco sem um acordo possa trazer ainda mais incertezas e prejuízos para o país.
Crise sanitária e econômica
O Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido encolheu 20,4% no segundo trimestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado, o pior resultado desde 1955, sobretudo em função da Covid-19. E a segunda onda de contaminações pode estar logo ali. O país tem registrado recordes de novos casos diários desde maio. Isso pode significar novas medidas restritivas com consequências negativas sobre a atividade econômica e o nível de empregos.
Um Brexit sem acordo também é ruim para a Europa, mas os 27 países que ficam no bloco têm a tranquilidade de estar dentro de um mercado de meio bilhão de habitantes. O Reino Unido, por sua vez, terá de renegociar sua posição no mundo, com novos acordos comerciais, com os europeus inclusive.
As regras de transição, que permitem ao Reino Unido funcionar como se ainda estivesse dentro da UE, terminam no dia 31 de dezembro. Um acordo precisa sair até meados de outubro para que os parlamentos de cada um dos 27 países da UE possam aprová-lo.A