Há 75 anos a Unesco era criada com a missão de contribuir para a construção da paz, através da educação, ciências, cultura, comunicação e informação. Em 1946, na época da fundação, o mundo acabava de atravessar duas guerras em menos de uma geração e as nações estavam convencidas de que acordos políticos e econômicos não seriam suficientes para construir uma paz durável.
Com o tempo, a agência da ONU teve que se adaptar a novos desafios como crise ambiental, evoluções tecnológicas e até uma pandemia.
O Brasil contribuiu ativamente para a fundação da Unesco, principalmente através de Paulo Carneiro, que ocupou durante anos o posto de representante do Brasil na Unesco e esteve vinculado à instituição por mais de 30 anos.
Marcio Barbosa, ex-diretor-adjunto da Unesco, afirma que as ações de Carneiro são relevantes até hoje. "Graças a ele se sabe que o Brasil foi relevante na construção da Unesco". Ele conta como o papel do químico brasileiro foi importante no estabelecimento do patrimônio histórico mundial.
"Esta foi uma das grandes ideias que saíram logo depois da criação da Unesco como fórum de debates, como fórum de integração, que até hoje é extremamente relevante. Se você falar da organização hoje pra qualquer um, todo mundo vai se lembrar do patrimônio histórico", diz. "Foi Paulo Carneiro que teve esta visão e iniciou o cadastramento de locais, monumentos e espaços que deveriam ser preservados. Então eu acho que a organização passou a atuar na cultura graças a Paulo Carneiro", afirma. Mais de mil sítios são inscritos atualmente no patrimônio da humanidade no mundo inteiro.
Barbosa foi diretor-adjunto da instituição entre 1999 e 2009. Na época, a organização caminhava para "uma certa irrelevância" lembra, sem credibilidade financeira e ineficiente. O mandato do japonês Koichiro Matsuura conseguiu recuperar a credibilidade da organização e provar sua capacidade de gestão. O resultado foi a volta de parceiros importantes como os Estados Unidos à Unesco, em 2003.
Outro ponto essencial da gestão, segundo Barbosa, foi que a agência passou a focar em temas essenciais. "A Unesco vive até hoje um grande dilema. Ela tem um mandato muito grande, o que dá a ela espaço para trabalhar em educação, cultura, ciência, informação, e essa variedade de temas acaba prejudicando o foco, se você não tomar cuidado", explica.
Desafios e contribuições
Além dos desafios da gestão, no mesmo período, a Unesco teve que enfrentar outros episódios como a destruição dos Budas gigantes de Bamyian, no Afeganistão, os atentados do 11 de setembro, nos Estados Unidos, a invasão e a perspectiva de destruição do sistema educativo do Iraque e o tsunami no oceano Índico, que matou mais de 200 mil pessoas na Tailândia, Índia e Indonésia. Finalmente, em 2008, a organização enfrentou a crise financeira que levou vários países a cortarem suas contribuições.
Para ele, uma das principais contribuições do mandato foi a declaração sobre a diversidade cultural. "Não se falava nisso, era uma coisa relegada", argumenta. "Eu considero a convenção universal que trata das expressões culturais talvez a mais importante que tenha sido feita na história da organização, aliada a do patrimônio imaterial, que trata de nossos hábitos, da nossa história, da nossa cultura", afirma.
Recentemente a agência da ONU enfrentou un novo desafio: a pandemia de Covid-19, com as escolas fechadas e milhões de crianças no mundo inteiro fora das salas de aula. "A Unesco está certa em liderar um esforço, não só para trazer as crianças para a escola, mas para fazer com as que estão, permaneçam", defende.
Embora a instituição continue vivendo com poucos recursos, ele acredita que a Unesco deveria atuar mais em campo, para manter sua relevância. "A Unesco precisa combinar um pouco dessa sala de debate, de reuniões, convenções diplomáticas, muito importantes, com um pouco mais de ação no campo", recomenda.
"Outra sugestão, seria que ela pratique mais a intersetorialidade que tem. Porque os temas não têm uma solução apenas na disciplina mais próxima deles. Tem uma série de componentes que podem contribuir para uma solução mais completa. Como a Unesco tem muitos setores, se ela trabalhasse de uma maneira intersetorial, eu acho que ela seria mais relevante", analisa.
Para ele, a organização deveria atacar de maneira mais visível questões que afetam o mundo atualmente. Ele lamenta que a Unesco tenha ficado fora do debate sobre a crise migratória que surgiu com a guerra da Síria, por exemplo.
Barbosa também acha que a organização deveria ter um discurso forte na COP26, "porque as mudanças climáticas vão impactar as coisas com que ela lida".
Decepção
Em 2009 o nome de Barbosa foi cotado para o cargo de diretor-geral da Unesco. Ele acabou não se candidatando porque o governo brasileiro declarou seu apoio ao ministro egípcio da Cultura, Farouk Hosni, que acabou sendo derrotado por Irina Gueorguieva Bokova, ex-chanceler da Bulgária.
"Eu tinha a convicção que, não em função de qualidades próprias, mas em função do trabalho que tinha sido feito por essa equipe, eu seria apoiado por um grande número de países e ganharia a eleição", diz. "Então foi muito frustrante ver que o ex-presidente Lula apoiou um egípcio".
Ele lamenta que o Brasil não tenha se interessado mais pela instituição. "Eu passei a conhecer um pouco mais a Unesco e vejo que ela é a cara do Brasil. Nós temos os mesmos problemas de educação que a Unesco se preocupa, temos os mesmos problemas nas ciências, poucos recursos, mas uma equipe muito boa. Nós tínhamos um protagonismo imenso na questão do clima", afirma. "Então o Brasil poderia se valer muito se tivesse um representante em qualquer um dos níveis da organização".
O engenheiro de formação e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) diz que não vê na atual conjuntura uma possibilidade para que isso aconteça, devido a um certo "desleixo" do Brasil com a ciência e a tecnologia. "O Brasil acaba de sofrer, em sua proposta orçamentária de 2022, mais uma vez um corte no seu orçamento (da ciência e tecnologia), o que é frustrante porque foi muito difícil construir uma base científica no Inpe, na Embrapa, ou em várias outras organizações do país. Hoje estão numa fase de não saberem o que fazer para manter o que tinham conquistado".
Fonte: RFI