Discurso ao Corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé.
Na manhã de segunda-feira 10 de janeiro, no Salão das Bênçãos, o Papa Francisco recebeu em audiência os membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé para a tradicional troca de bons-votos para o Ano Novo. Depois da saudação que lhe foi dirigida pelo decano do Corpo Diplomático, o embaixador de Chipre, Georgios F. Poulides, o Pontífice proferiu o seguinte discurso.
Excelências,
Senhoras e Senhores!
Ontem chegou ao fim o tempo litúrgico do Natal, período privilegiado para cultivar as relações familiares que por vezes nos veem tão distraídos e distantes, tão atarefados com tantos compromissos como frequentemente aparecemos no resto do ano. Hoje, queremos dar continuidade ao espírito do Natal, encontrando-nos juntos como uma grande família, que se encontra e dialoga. No fundo, este é o objetivo da diplomacia: ajudar a deixar de lado os dissabores da convivência humana, favorecer a concórdia e experimentar como, superando as areias movediças da conflitualidade, podemos redescobrir o sentido da unidade profunda da realidade.1
Por isso, sinto-me particularmente agradecido por terdes querido tomar parte neste nosso «encontro de família» anual, ocasião propícia de trocarmos mutuamente os bons votos para o novo ano e olharmos conjuntamente as luzes e as sombras do nosso tempo. Um agradecimento particular, exprimo-o ao Excelentíssimo Decano, o Senhor George Poulides, Embaixador de Chipre, pela amabilidade das palavras que me dirigiu em nome de todo o Corpo Diplomático. Por vosso intermédio, desejo fazer chegar a minha saudação e a certeza da minha estima também aos povos que representais.
A vossa presença é sempre um sinal palpável da atenção que os vossos países têm pela Santa Sé e o seu papel na comunidade internacional. Para participar neste momento, muitos de vós chegaram doutras capitais, unindo-se assim ao grande grupo dos Embaixadores residentes em Roma, aos quais virá brevemente juntar-se o da Confederação Suíça.
Prezados Embaixadores!
Nestes dias, vemos como a luta contra a pandemia ainda requer, da parte de todos, um esforço considerável e como o novo ano se anuncia também desafiador. O coronavírus continua a criar isolamento social e a ceifar vítimas; dentre os que perderam a vida, gostaria de recordar aqui o saudoso Arcebispo Aldo Giordano, Núncio Apostólico bem conhecido e estimado no seio da comunidade diplomática. Ao mesmo tempo pudemos constatar que, onde se realizou uma campanha de vacinação eficaz, diminuiu o risco de um decurso grave da doença.
Assim é importante que se possa continuar o esforço por imunizar, no máximo possível, a população. Isto requer um múltiplo empenho a nível pessoal, político e da comunidade internacional inteira. Em primeiro lugar, a nível pessoal. Todos temos a responsabilidade de cuidar de nós próprios e da nossa saúde, o que se traduz também no respeito pela saúde de quem vive ao nosso lado. O cuidado da saúde constitui uma obrigação moral. Constatamos cada vez mais, infelizmente, como vivemos num mundo de fortes contrastes ideológicos. Muitas vezes deixamo-nos determinar pela ideologia do momento, frequentemente construída sobre informações infundadas ou factos pouco documentados. Contrariamente a toda a afirmação ideológica que corta os laços da razão humana com a realidade objetiva das coisas, a pandemia impõe-nos uma espécie de «tratamento de realidade», que exige encarar de frente o problema e adotar os remédios adequados para o resolver. As vacinas não são instrumentos mágicos de cura, mas constituem sem dúvida, conjuntamente com os tratamentos que precisam de ser desenvolvidos, a solução mais razoável para a prevenção da doença.
Depois, deve haver o empenho da política na busca do bem da população através de decisões de prevenção e imunização, que envolvam também os cidadãos a fim de poderem sentir-se participantes e responsáveis, graças a uma comunicação transparente das problemáticas e das medidas idóneas para as enfrentar. A falta de firmeza na tomada de decisões e de clareza comunicativa gera confusão, cria desconfiança e mina a coesão social, alimentando novas tensões. Instaura-se um «relativismo social» que fere a harmonia e a unidade.
Por fim, é necessário um empenho geral da comunidade internacional, para que toda a população mundial tenha igual acesso aos cuidados médicos essenciais e às vacinas. Com mágoa, tem-se de constatar que o acesso universal à assistência sanitária ainda permanece uma miragem em vastas áreas do mundo. Num momento tão grave para toda a humanidade, reitero o meu apelo a fim de que os governos e as entidades privadas interessadas mostrem sentido de responsabilidade, elaborando uma resposta coordenada a todos os níveis (local, nacional, regional, global), através de novos modelos de solidariedade e instrumentos aptos para reforçar as capacidades dos países mais carecidos. Em particular, permito-me exortar os Estados, que estão trabalhando para estabelecer um instrumento internacional de preparação e resposta às pandemias sob a égide da Organização Mundial da Saúde, a adotarem uma política de partilha desinteressada, como princípio-chave para garantir a todos o acesso a instrumentos de diagnóstico, vacinas e medicamentos. E de igual modo, espera-se que instituições como a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual adaptem os seus instrumentos jurídicos, para que as regras monopolistas não constituam acrescidos obstáculos à produção e a um acesso organizado e coerente dos tratamentos a nível mundial.
Prezados Embaixadores!
No ano passado, graças também ao abrandamento das restrições impostas em 2020, tive a oportunidade de receber muitos Chefes de Estado e de Governo, bem como várias autoridades civis e religiosas.
Dentre os numerosos encontros, gostaria de mencionar aqui a jornada dedicada à reflexão e oração pelo Líbano, no dia 1 de julho passado. Ao amado povo libanês, aflito por uma crise económica e política que sente dificuldade a encontrar solução, desejo renovar hoje a minha solidariedade e a minha oração, enquanto espero que as reformas necessárias e o apoio da comunidade internacional ajudem o país a manter-se firme na própria identidade de modelo de coexistência pacífica e de fraternidade entre as várias religiões presentes.
No decurso de 2021, pude retomar também as viagens apostólicas. Em março, tive a alegria de ir ao Iraque. A Providência quis que isso acontecesse, como sinal de esperança depois de anos de guerra e terrorismo. O povo iraquiano tem direito a reencontrar a dignidade que lhe pertence e a viver em paz. As suas raízes religiosas e culturais são milenárias: a Mesopotâmia é berço de civilização; foi de lá que Deus chamou Abraão para iniciar a história da salvação.
Depois, em setembro, fui a Budapeste para a conclusão do Congresso Eucarístico Internacional e em seguida à Eslováquia. Foi uma oportunidade de encontro com os fiéis católicos e doutras confissões cristãs, e também de diálogo com os judeus. Da mesma forma, a viagem a Chipre e à Grécia, cuja memória permanece viva em mim, permitiu-me aprofundar os laços com os irmãos ortodoxos e experimentar a fraternidade entre as várias confissões cristãs.
Uma parte comovente desta viagem teve lugar na ilha de Lesbos, onde pude constatar a generosidade de quantos prestam a sua ação para oferecer acolhimento e ajuda aos migrantes, mas sobretudo vi os rostos de tantas crianças e adultos hóspedes dos centros de acolhimento. Nos seus olhos, há o cansaço da viagem, o medo de um futuro incerto, a angústia pelos entes queridos que deixaram para trás e a saudade da pátria que foram obrigados a abandonar. Diante destes rostos, não podemos permanecer indiferentes, nem se pode entrincheirar atrás de muros e arame farpado a pretexto de defender a segurança ou um estilo de vida. Isto não pode ser.
Por isso, agradeço a quantos — indivíduos e governos — se esforçam por garantir acolhimento e proteção aos migrantes, cuidando também da sua promoção humana e integração nos países que os acolheram. Estou ciente das dificuldades com que alguns Estados se deparam perante fluxos imensos de pessoas. A ninguém pode ser pedido aquilo que está impossibilitado de fazer, mas há uma diferença nítida entre acolher, embora limitadamente, e repelir totalmente.
É preciso vencer a indiferença e rejeitar a ideia de que os migrantes são um problema de outrem. O resultado desta perspetiva vê-se na própria desumanização dos migrantes concentrados em campos de recolha, onde acabam por ser presa fácil da criminalidade e dos traficantes de seres humanos, ou por se lançar em desesperadas tentativas de fuga que às vezes terminam com a morte. Infelizmente, é preciso também destacar que os próprios migrantes muitas vezes são transformados em arma de chantagem política, numa espécie de «mercadoria de barganha» que priva as pessoas da dignidade.
Desejo renovar aqui a minha gratidão às autoridades italianas, graças às quais algumas pessoas de Chipre e da Grécia puderam vir comigo para Roma. Tratou-se de um gesto simples, mas significativo. Ao povo italiano, que muito sofreu no início da pandemia, mas que também deu sinais encorajadores de retoma, formulo os melhores votos de manter sempre este espírito de abertura generosa e solidária que o carateriza.
Entretanto considero de importância fundamental que a União Europeia encontre a sua coesão interna na gestão das migrações, como a soube encontrar para enfrentar as consequências da pandemia. De facto, é necessário criar um sistema coerente e global de gestão das políticas migratórias e de asilo, de modo que sejam compartilhadas as responsabilidades no acolhimento dos migrantes, na revisão dos pedidos de asilo, na redistribuição e integração de quantos podem ser aceites. A capacidade de negociar e encontrar soluções compartilhadas é um dos pontos de força da União Europeia e constitui um modelo válido para perspetivar os desafios globais que nos esperam.
Todavia as migrações não dizem respeito apenas à Europa, embora esta seja particularmente procurada pelos fluxos vindos da África e da Ásia. Nestes anos, assistimos, para além doutros, ao êxodo dos refugiados sírios, aos quais se vieram juntar nos últimos meses os que fogem do Afeganistão. Também não devemos esquecer os êxodos maciços que buscam o continente americano e pressionam na fronteira entre o México e os Estados Unidos da América. Muitos daqueles migrantes são haitianos em fuga das tragédias que atingiram o seu país nestes anos.
A questão migratória, bem como a pandemia e as mudanças climáticas mostram claramente que ninguém se pode salvar sozinho, ou seja, os grandes desafios do nosso tempo são todos globais. Por isso, é preocupante constatar como, face a uma maior interligação dos problemas, vai crescendo uma mais ampla fragmentação das soluções. Verifica-se, não raro, uma falta de vontade em querer abrir janelas de diálogo e sendas de fraternidade, o que acaba por alimentar novas tensões e divisões, além de um sentimento generalizado de incerteza e instabilidade. Pelo contrário, é preciso recuperar o sentido da nossa identidade comum de uma única família humana. A alternativa só pode ser um crescente isolamento, marcado por preconceitos e fechamentos mútuos que, de facto, colocam ainda mais em perigo o multilateralismo, que é o estilo diplomático que tem caraterizado as relações internacionais desde o fim da II Guerra Mundial.
A diplomacia multilateral atravessa, desde há algum tempo, uma crise de confiança, devido à reduzida credibilidade dos sistemas sociais, governamentais e intergovernamentais. Com frequência, tomam-se importantes resoluções, declarações e decisões sem uma verdadeira negociação onde todos os países tenham possibilidade de intervir. Este desequilíbrio, que hoje se tornou dramaticamente evidente, gera insatisfação para com os organismos internacionais por parte de muitos Estados e enfraquece no seu todo o sistema multilateral, tornando-o cada vez menos eficaz para enfrentar os desafios globais.
A falta de eficácia de muitas organizações internacionais é devida também à diferença de visão, entre os vários membros, dos objetivos que aquelas se deveriam prefixar. Não raro, o centro principal de interesse tem-se deslocado para temáticas que são por sua natureza divisivas e não estritamente atinentes à finalidade da organização, com o resultado de agendas cada vez mais ditadas por um pensamento que nega os fundamentos naturais da humanidade e as raízes culturais que constituem a identidade de muitos povos. Como já tive oportunidade de afirmar noutras ocasiões, considero que se trata de uma forma de colonização ideológica, que não deixa espaço à liberdade de expressão e que hoje se concretiza cada vez mais naquela cultura censória, que invade tantos espaços e instituições públicas. Em nome da proteção das diversidades, acaba-se por apagar o sentido de cada identidade, com o risco de silenciar as posições que defendem uma ideia respeitosa e equilibrada das várias sensibilidades. Elabora-se um pensamento único — perigoso — que é forçado a renegar a história ou, pior ainda, a reescrevê-la com base em categorias contemporâneas, quando cada situação histórica deve ser interpretada segundo a hermenêutica da época, não a hermenêutica de hoje.
Por isso, a diplomacia multilateral é chamada a ser verdadeiramente inclusiva, não cancelando, mas valorizando as diversidades e as sensibilidades históricas que caraterizam os vários povos. Recuperará, assim, credibilidade e eficácia para enfrentar os próximos desafios, que exigem que a humanidade se reúna como uma grande família, que, embora partindo de pontos de vista diferentes, deve ser capaz de encontrar soluções comuns para o bem de todos. Isto exige confiança mútua e disponibilidade para dialogar, ou seja, «ouvir-se um ao outro, confrontar posições, pôr-se de acordo e caminhar juntos».2 Aliás «o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional».3 Nunca devemos esquecer que «há alguns valores permanentes».4 Nem sempre é fácil reconhecê-los, mas aceitá-los «confere solidez e estabilidade a uma ética social. Mesmo quando os reconhecemos e assumimos através do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares estão para além de qualquer consenso».5 Desejo recordar especialmente o direito à vida, desde a conceção até ao fim natural, e o direito à liberdade religiosa.
Nesta perspetiva, tem crescido progressivamente, nos últimos anos, a consciência coletiva quanto à urgência de enfrentar o cuidado da nossa Casa comum, que geme por causa de uma contínua e indiscriminada exploração dos recursos. A este respeito, penso especialmente nas Filipinas, atingidas nas semanas passadas por um tufão devastador, bem como noutras nações do Pacífico, vulneráveis aos efeitos negativos das mudanças climáticas, que colocam em risco a vida dos habitantes, a maioria dos quais depende da agricultura, pesca e recursos naturais.
Precisamente uma tal constatação deve impelir a comunidade internacional, na sua globalidade, a encontrar soluções comuns e colocá-las em prática. Ninguém pode eximir-se deste esforço, pois interessa e envolve igualmente a todos. Na recente COP 26 em Glasgow, foram dados alguns passos que vão na direção certa, embora bastante débeis relativamente à consistência do problema a enfrentar. O caminho para se alcançar os objetivos do Acordo de Paris é complexo e parece ainda longo, enquanto se torna cada vez mais curto o tempo à disposição. Ainda há muito a fazer, e por conseguinte 2022 será mais um ano fundamental para verificar quanto e como possa e deva ser ainda mais reforçado o que foi decidido em Glasgow, tendo em vista a COP 27 prevista para novembro próximo no Egito.
Excelências, Senhoras e Senhores!
Diálogo e fraternidade são os dois focos essenciais para superar as crises do momento presente. Todavia, «apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos»,6 e toda a comunidade internacional se deve interrogar sobre a urgência de encontrar soluções para conflitos intermináveis, que por vezes assumem a fisionomia de verdadeiras e próprias guerras por procuração (proxy wars).
Penso antes de mais nada na Síria, onde não se vê ainda um horizonte claro para o renascimento do país. Ainda hoje o povo sírio chora os seus mortos, a perda de tudo e espera por um futuro melhor. São necessárias reformas políticas e constitucionais, para que o país renasça, mas é preciso também que as sanções aplicadas não atinjam diretamente a vida quotidiana, oferecendo um vislumbre de esperança à população, cada vez mais aflita pela pobreza.
Nem podemos esquecer o conflito no Iémen, uma tragédia humana que se desenrola há anos em silêncio, longe dos holofotes dos meios de comunicação e no meio de uma certa indiferença da comunidade internacional, continuando a provocar numerosas vítimas civis, especialmente mulheres e crianças.
No ano passado, nenhum progresso foi feito no processo de paz entre Israel e Palestina. Gostaria verdadeiramente de ver estes dois povos reconstruir a confiança entre eles e voltar a falar um com o outro diretamente para chegarem a viver em dois Estados lado a lado, em paz e segurança, sem ódio nem ressentimentos, mas curados pelo perdão mútuo.
Preocupam as tensões institucionais na Líbia; bem como os episódios de violência por obra do terrorismo internacional na região do Sahel e os conflitos internos no Sudão, Sudão do Sul e Etiópia, onde é necessário encontrar «o caminho da reconciliação e da paz, através de uma discussão sincera que coloque em primeiro lugar as necessidades da população».7
As desigualdades profundas, as injustiças e a corrupção endémica, assim como as várias formas de pobreza que ofendem a dignidade das pessoas continuam a alimentar conflitos sociais também no continente americano, onde as polarizações cada vez mais fortes não ajudam a resolver os problemas reais e urgentes dos cidadãos, sobretudo dos mais pobres e vulneráveis.
A confiança mútua e a disponibilidade para um sereno confronto devem animar todas as partes interessadas a encontrarem soluções aceitáveis e duradouras na Ucrânia e no sul do Cáucaso, bem como a evitarem a abertura de novas crises nos Balcãs, principalmente na Bósnia e Herzegovina.
Diálogo e fraternidade são de grande urgência para enfrentar, com sabedoria e eficácia, a crise que assola Myanmar há quase um ano, onde as estradas que antes eram lugares de encontro, agora são palco de confrontos, que não poupam sequer os lugares de oração.
Naturalmente todos os conflitos são favorecidos pela abundância de armas à disposição e pela falta de escrúpulos de quantos se esforçam por espalhá-las. Às vezes, temos a ilusão de que os armamentos servem apenas para desempenhar um papel dissuasor contra possíveis agressores. A história e as notícias também, infelizmente, ensinam-nos que não é assim. Quem possui armas, acaba mais cedo ou mais tarde por usá-las, porque, como dizia São Paulo VI , «não se pode amar com armas ofensivas nas mãos».8 Além disso, «quando nos rendemos à lógica das armas e afastamos da prática do diálogo, esquecemos tragicamente que as armas, antes mesmo de causar vítimas e ruínas, têm a capacidade de provocar pesadelos».9 Trata-se de preocupações tornadas ainda mais concretas hoje com a disponibilidade e a utilização de armamentos autónomos, que podem ter consequências terríveis e imprevisíveis, mas que deveriam estar sujeitas à responsabilidade da comunidade internacional.
Dentre as armas que a humanidade produziu, causam particular preocupação as armas nucleares. No fim de dezembro passado, devido à pandemia, foi de novo adiada a X Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação Nuclear, que estava prevista em Nova York nestes dias. Um mundo livre de armas nucleares é possível e necessário. Espero, pois, que a comunidade internacional aproveite a oportunidade da citada Conferência para realizar um passo significativo nesta direção.
A Santa Sé continua firmemente a sustentar que as armas nucleares são instrumentos inadequados e impróprios para responder às ameaças à segurança no século XXI e que a sua posse é imoral. A sua fabricação desvia recursos que deviam ser empregues na perspetiva de um desenvolvimento humano integral e a sua utilização, além de produzir consequências humanitárias e ambientais catastróficas, ameaça a própria existência da humanidade.
A Santa Sé considera igualmente importante que a retoma em Viena das negociações do Acordo acerca do nuclear com o Irã (Joint Comprehensive Plan of Action) possa alcançar resultados positivos para garantir um mundo mais seguro e fraterno.
Prezados Embaixadores!
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz celebrado no passado dia 1 de janeiro, procurei destacar os elementos que considero essenciais para fomentar uma cultura do diálogo e da fraternidade.
Um lugar especial é ocupado pela educação, através da qual se formam as novas gerações que são a esperança e o futuro do mundo. É o vetor primário do desenvolvimento humano integral, pois torna a pessoa livre e responsável.10 O processo educativo é lento e trabalhoso, podendo às vezes levar ao desânimo, mas não se pode renunciar a ele jamais. Aquele é expressão eminente do diálogo, porque não há verdadeira educação que não seja estruturalmente dialógica. Depois a educação gera cultura e cria pontes de encontro entre os povos. A Santa Sé pretendeu sublinhar o seu valor participando também na Expo Dubai 2021, nos Emirados Árabes Unidos, com a instalação de um Pavilhão inspirado no tema da Exposição: «Ligar as mentes, criar o futuro».
A Igreja Católica sempre reconheceu e valorizou o papel da educação para o crescimento espiritual, moral e social das novas gerações. Por isso, é ainda mais doloroso para mim constatar como, em vários centros educativos — paróquias e escolas —, foram cometidos abusos sobre menores, com graves consequências psicológicas e espirituais para as pessoas que os sofreram. Trata-se de crimes, sobre os quais deve haver uma firme vontade de esclarecer, examinando os casos individuais para apurar as responsabilidades, fazer justiça às vítimas e impedir que se repitam no futuro semelhantes atrocidades.
Não obstante a gravidade de tais atos, nenhuma sociedade pode jamais abdicar da responsabilidade de educar. Ao contrário, é doloroso constatar como frequentemente, nos orçamentos dos Estados, poucos recursos sejam destinados à educação. Prevalece a sua visão como um custo, quando se trata do melhor investimento possível.
A pandemia impediu a muitos jovens o acesso às instituições educativas, em detrimento do seu processo de crescimento pessoal e social. Muitos, através dos instrumentos tecnológicos modernos, encontraram refúgio em realidades virtuais que criam laços psicológicos e emocionais muito fortes, com a consequência de se alhearem dos outros e da realidade circundante e modificarem radicalmente as relações sociais. Com isto, não pretendo certamente negar a utilidade da tecnologia e dos seus produtos, que permitem conectar-se sempre com mais facilidade e rapidez, mas recordo a urgência de velar para que tais instrumentos não substituam as verdadeiras relações humanas a nível interpessoal, familiar, social e internacional. Se já desde pequeno se aprende a isolar-se, será mais difícil no futuro construir pontes de fraternidade e de paz. Num universo onde só existe o «eu», dificilmente pode haver espaço para um «nós».
O segundo elemento que desejo relembrar brevemente é o trabalho, «fator indispensável para construir e preservar a paz. Aquele constitui expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém. Nesta perspetiva acentuadamente social, o trabalho é o lugar onde aprendemos a dar a nossa contribuição para um mundo mais habitável e belo».11
Salta aos olhos como a pandemia pôs duramente à prova a economia mundial, com graves repercussões nas famílias e nos trabalhadores, que vivem situações marcadas mais pela angústia psicológica do que pelas próprias dificuldades económicas. Aquela colocou ainda mais em evidência as desigualdades persistentes em várias esferas socioeconómicas. Pense-se no acesso a água potável, na alimentação, na instrução, nos cuidados médicos. O número de pessoas incluídas na categoria de pobreza extrema tem aumentado sensivelmente. Além disso, a crise sanitária levou muitos trabalhadores a mudar o tipo de trabalho e obrigou-os por vezes a entrar na economia clandestina, privando-os assim dos sistemas de proteção social previstos em muitos países.
Neste contexto, a consciência do valor do trabalho adquire acrescida importância, pois não existe desenvolvimento económico sem o trabalho, nem se deve pensar que as tecnologias modernas possam substituir o valor acrescentado que advém do trabalho humano. Depois, é ocasião de descobrir a própria dignidade, de encontro e de crescimento humano, via privilegiada através da qual cada um participa ativamente no bem comum e presta uma contribuição concreta para a construção da paz. Por isso é necessária, também neste campo, uma maior cooperação entre todos os atores a nível local, nacional, regional e global, especialmente no próximo futuro com os desafios colocados pela desejada reconversão ecológica. Os próximos anos serão um tempo de oportunidades para desenvolver novos serviços e empresas, adaptar os existentes, aumentar o acesso ao trabalho digno e empenhar-se pelo respeito dos direitos humanos e de níveis adequados de remuneração e proteção social.
Excelências, Senhoras e Senhores!
O profeta Jeremias lembra que Deus tem, a nosso respeito, «desígnios de prosperidade e não de calamidade, de garantir um futuro de esperança» (29, 11). Por isso, não devemos ter medo de abrir espaço para a paz na nossa vida, cultivando o diálogo e a fraternidade entre nós. A paz é um bem «contagioso», que se propaga a partir do coração de quantos a desejam e aspiram a vivê-la abraçando o mundo inteiro. A cada um de vós, aos vossos entes queridos e aos vossos povos, renovo a minha bênção e os votos, bem sentidos, de um ano de serenidade e paz.
Obrigado!