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Da Tragédia ao Milagre dos Andes, uma lição de vida 50 anos depois

Os últimos oito sobreviventes da queda do avião da Força Aérea Uruguaia nos Andes, na América do Sul, se amontoam na fuselagem da embarcação na última noite antes do resgate, em 22 de dezembro de 1972. AP


  • Publicado em: 13/10/2022 - 18:38 / Modificado em: 13/10/2022 - 20:04

Considerada uma das lições de sobrevivência mais espetaculares da História e um dos episódios mais comoventes do século XX, aquela que começou como a "Tragédia dos Andes" e que terminou como o "Milagre dos Andes", completa 50 anos com o mesmo magnetismo de 1972 que transformou estudantes e jogadores de rugby em lendas.


Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires


Foi numa sexta-feira, 13 de outubro de 1972, quando o avião da Força Aérea uruguaia chocou contra uma montanha na Cordilheira dos Andes, impondo aos jovens sobreviventes adversidades extremas como fome, frio de 30ºC abaixo de zero, ar rarefeito, avalanche e até antropofagia, enquanto o mundo os considerava já mortos.


Os ingredientes da tragédia atraíram escritores, músicos e cineastas: são 26 livros, nove documentários, três filmes e algumas canções. A NetFlix também se prepara para lançar uma grande produção em comemoração aos 50 anos.


"Neste 13 de outubro, são 50 anos da Tragédia dos Andes. São 50 anos de um avião que colide contra uma montanha com 45 pessoas das que não se saberá mais nada durante 72 dias e todos pensam que estão todos mortos até que, em 21 de dezembro, surge um milagre. O mundo errou. Havia sobreviventes e isso é um milagre", descreve à RFI Roberto Canessa, um dos passageiros do avião que, aos 19 anos, atravessou a Cordilheira dos Andes em condições precárias, sem equipamento e sem conhecimento para avisar ao mundo que os seus amigos estavam vivos na montanha.


A colisão

Estava previsto que o bimotor de turbo hélice Fairchild 571 da Força Aérea do Uruguai voasse de Montevidéu até Santiago, no Chile, para que os estudantes jogassem um amistoso de rugby.


O mal tempo os obrigou a uma mudança de planos: em vez de um voo direto, era preciso pernoitar na cidade argentina de Mendoza. No dia seguinte, o mal tempo continuava, mas o avião decolou.


A potência para voar em altura era limitada. Exatamente nesse ponto, a Cordilheira se eleva a 6.000 metros de altura, erguendo-se o Aconcágua, o teto do continente americano. Para atravessar, então, era preciso desviar por um ponto ao Sul no qual as montanhas chegam a 4.000 metros.


Minutos depois, a 4650 metros de altura, o avião chocou-se contra uma montanha. Foi um erro de rumo do co-piloto. De tão brutal, o choque partiu a aeronave em duas, inaugurando a "Tragédia dos Andes".


Os protagonistas não tinham roupa para o frio, não conheciam a neve pela qual estavam cobertos e vinham de um país cujos maiores morros rondam os 500 metros de altura. Eram estudantes e jogadores do Old Christians Club, alguns dos quais acompanhados pelos pais.


Quando caíram, acreditavam que já estavam no Chile, mas ainda estavam em território argentino.


Vítimas e sobreviventes

Os que estavam sentados à frente e a tripulação morreram no ato. Os que sentavam atrás escaparam da morte imediata, mas teriam de lutar para sobreviver.


Com o impacto, morreram na hora 11 pessoas. Na noite do mesmo dia, outras cinco. Ao longo dos 72 dias, outras cinco pessoas morreriam como consequência dos graves ferimentos, da fome e do frio.


No dia 29 de outubro, 16 dias depois do acidente, outras oito pessoas morreram com uma avalanche que invadiu a fuselagem do avião, transformada em refúgio. Todos ficaram sepultados pela neve durante três dias. Sobreviveu quem conseguiu um pequeno espaço para respirar.


"Esse foi o momento mais difícil. Depois de termos sobrevivido durante os 16 primeiros dias, uma avalanche levou a vida de oito. Morreram os meus dois melhores amigos. Foi um momento dramático. Foi como se Deus nos desse as costas", contou à RFI Carlos Páez, então com 18 anos, quem faria 19 durante o gélido calvário.


Dos 45 passageiros e tripulantes, 29 morreram. Apenas 30%, 16 pessoas, sobreviveram num estado de extrema fragilidade. Os 29 mortos permanecem enterrados na Cordilheira.


"Esta é uma história extraordinária, totalmente atemporal, protagonizada por gente comum. Eu era um menino de 18 anos, de uma família abastada. Nunca tinha passado frio. Nunca tinha passado fome. Olho para 50 anos atrás e penso que aconteceu com outra pessoa, não comigo", diz "Carlitos", filho do falecido e célebre pintor uruguaio Carlos Páez Vilaró.


Carlitos tornou-se técnico agropecuário, empresário e palestrante. Viaja pelo mundo com 100 palestras anuais, mais de mil acumuladas, sobre a experiência vivida na montanha que conjuga trabalho em equipe, tomada de decisões vitais, tolerância diante da frustração, adaptação às mudanças e administração da incerteza com recursos próprios e desconhecidos até que surge a adversidade.


"Um dos grandes ingredientes desta história é a inconsciência da juventude. Não é politicamente correto, mas nós vivemos isso mais como uma aventura do que como uma tragédia. Seguramente, era um mecanismo de defesa", reflete.


Antropofagia

A decisão de comer carne humana dos cadáveres foi uma consequência natural da absoluta falta de alimentos. Aconteceu depois de dez dias sem comerem enquanto alguns morriam de fome. Foi um dilema moral e religioso que durou dias.


"Vínhamos de um processo de dez dias sem comer absolutamente nada e soubemos no décimo dia que não procuravam mais por nós. A decisão (de comer carne humana, cadáveres das vítimas do acidente) surgiu porque não havia alternativa. Qualquer um teria agido da mesma maneira. Se eu estivesse novamente nessa situação, não esperaria pelo décimo dia. Já no segundo dia, tomo a decisão", garante Carlitos.


"Nas últimas 70 ou 80 palestras que dei, lá pela metade, eu fiz a pergunta ao contrário. Pergunto ao público se alguém não teria feito o mesmo. Nunca ninguém levantou a mão", afirma.


"A religião ajuda a saber que a alma vai para um lado e que o resto é matéria. O papa da época, Paulo VI, não só nos mandou um telegrama de benção, como também um telegrama de congratulações, dizendo que agimos como verdadeiros cristãos porque Deus nos põe aqui para viver, não para morrer", revela. "O papa disse que até poderia ser considerado suicídio não tê-lo feito", sublinha.


O hoje cardiologista infantil Roberto Canessa, então estudante de Medicina, era o responsável por "fabricar água", convertendo a neve em estado líquido. Também tratava dos doentes e, como conhecia a anatomia humana, foi um dos responsáveis por cortar partes dos corpos em pequenos pedaços e colocá-las sobre a fuselagem para que se secassem ao sol. Foi também o primeiro a provar carne humana.


"Não fizemos nada para nos arrependermos. Levamos um pouco dos nossos amigos no corpo e na alma. Acredito que teria sentido essa honra se tivesse morrido e que me tivessem usado para viver. Eu sinto que eles nos transplantaram a vida", interpreta.


O outro estudante de Medicina para essa tarefa foi Gustavo Zerbino.


Definidos como mortos

Numa das malas, tinham encontrado um rádio transmissor, através do qual podiam apenas ouvir. Dez dias depois do acidente, ouviram que as operações de busca e resgate tinham acabado porque eram considerados mortos.


"Escutar pelo rádio que te decretam morto, que já não existes e que o mundo continua sem ti dá vontade de gritar 'estás vivo' e que 'por favor, continuem a procurar por nós', que não nos abandonem", recorda Roberto.


Foi nessa hora em que tudo mudou. Não existia mais a possibilidade de continuarem à espera de um resgate. Ou lutavam para sair ou ficariam para sempre. Era hora de agir mesmo sem forças, sem instrumentos, sem conhecimentos, sem condições.


"Elimina o grande dilema entre esperar o resgate ou sair para procurar ajuda. Se não conseguíssemos, não seria um fracasso porque o fracasso era onde estávamos. Com essa ideia, decidimos caminhar. Sabíamos que eram 70 Km para o oeste e que era preciso dar cem mil passos. Cada passo era um passo a menos que faltava. Com essa convicção, saímos. Já não aguentava mais, já me arrastava, o coração saía pela boca, mas olhava para trás e a fuselagem já estava muito distante. Aprendi que, quando desanimas, deves olhar de onde vens e onde estás para saber que vais bem", aponta Roberto.


Foram semanas de preparação para sobreviver a uma travessia com mais probabilidades de fracasso do que de sucesso. No dia 12 de dezembro, Roberto Canessa e Fernando Parrado foram em direção ao oeste, onde o sol se põe e onde fica o Chile.


"Além disso, Arturo Nogueira (falecido) me disse 'que sorte tens de ter as pernas saudáveis e de poder andar. E não és um parasita como eu que depende da tua coragem de sair a andar'. Isso me deu uma injeção de heroísmo, de esperança", relembra Roberto.


Se fosse hoje, bastaria um GPS para saberem que estavam mais próximos da civilização do lado argentino e que, a apenas 15 quilômetros dali, havia um refúgio de montanha.


Salvador sertajeno

No dia 20 de dezembro, oito dias depois, os dois avistaram um sertanejo, o chileno Sergio Catalán, quem estava a cavalo e ouviu os gritos. Era de tardinha, havia um rio entre eles e Sergio prometeu voltar no dia seguinte. Mesmo sem entender o que acontecia, cumpriu com a palavra.


"Ele tinha nos visto antes porque eles andam pelo alto da montanha. Nós íamos pela margem do rio. Ele pensou que estávamos caçando. Ficou intimidado. Quando lhe gritamos, ele não entendia nada. Já era tarde na montanha. Então, ele gritou: 'Amanhã, amanhã'. E foi o 'amanhã' mais maravilhoso da minha vida. De estar preso numa cadeia perpétua a que me disessem 'amanhã', abria-se uma esperança gigantesca", conta Roberto.


"Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou uruguaio. Há dez dias, estamos caminhando. Tenho um amigo ferido no alto (da montanha). No avião, há 14 pessoas feridas. Temos de sair rápido daqui. Não sabemos como. Não temos comida. Estamos fracos. Quando vão buscar-nos lá em cima? Por favor, não podemos nem andar. Onde estamos?", dizia o bilhete que Roberto e Fernando arremessaram ao camponês, quem, ao ler a nota, sinaliza que vai procurar ajuda.


Depois de avisar à Polícia, no dia 22 de dezembro, seis sobreviventes foram resgatados de helicóptero. No dia seguinte, os oito restantes.


"Recordo disso permanentemente como um feito lindo e maravilhoso. Espero o final do filme 'Vivos' (Alive) mil vezes para a chegada dos helicópteros (de resgate) porque foi a chegada da liberdade", diz Carlitos. "A grande mensagem desta história é que não nos encontraram. Nós fomos buscar os helicópteros. É uma diferença conceitual", destaca.


50 anos depois

A notícia que comoveu o mundo mantém-se vigente até hoje. Todos os anos, assim como este, rezam uma missa nos dias 13 de outubro em memória da "tragédia". Nos dias 22 de dezembro, comemoram o "milagre".


"A vida continuou. Cada um seguiu o seu caminho, mas nos dias 13 de outubro nos reunimos para uma missa e nos dias 22 de dezembro sempre fazemos uma celebração, agora com os nossos filhos e com os nossos netos, que já são mais de 100. Nós nos vemos permanentemente. À minha casa, vêm praticamente uma vez por mês. O engraçado é que só falamos sobre a Cordilheira. É uma espécie de terapia mensal que temos entre nós", revela Carlitos.


"Eu me considero um privilegiado. Essa possibilidade de sobreviver que os demais não tiveram me dá muita força. Eu ia visitar a mãe do Arturo Nogueira, quem morreu na montanha. E eu saía de lá e pensava na sorte que a minha mãe tinha com o seu filho de volta e saudável", desabafa Roberto.


"Eu consegui permanecer sem a contaminação dessa vida que temos todos os dias na qual se abrirmos uma torneira, sai água, na qual temos uma cama e temos comida. A vida, em momentos terríveis, pode catapultar-te a seres resilientes perante a adversidade. Podes fracassar na tentativa, mas não te render sem antes tentar", ensina.


"Quando eu estava na montanha, sentia saudade da vida porque lá tudo é neve, tudo é gelo. Não há nem moscas. Eu sentia falta da vegetação, das flores que eu sabia que floresciam na primavera e que me estavam faltando. Aprendi que mais do que medo de morrer, às vezes, tens pena de não continuar vivendo. Esse contraste de falta de vida foi o que me impulsionou", conclui Roberto Canessa.


Na semana passada, foi lançado um selo postal em homenagem ao 50º aniversário e o Banco Central do Uruguai anunciou que vai editar uma moeda em comemoração ao "Milagre dos Andes".

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