Karina Toledo | Agência FAPESP – A ideia pioneira de congregar grupos de cientistas sediados em diferentes partes do Estado de São Paulo em uma rede virtual de pesquisa colaborativa foi, possivelmente, decisiva para o sucesso do Projeto Genoma FAPESP, que começou efetivamente em 1998 e tinha como meta o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa. “O que fizemos foi criar um instituto de genômica virtual. Nós já éramos virtuais antes de o virtual estar na moda. Nós éramos virtuais 20 anos à frente de nosso tempo. E esse foi um movimento brilhante”, disse o bioquímico inglês Andrew Simpson, que coordenou a iniciativa.
A análise foi feita durante a apresentação de Simpson no segundo dia (22/11) do Genome Workshop 20+2. O evento integra as atividades comemorativas do 60º aniversário da FAPESP e celebra os 22 anos da empreitada científica que inaugurou a pesquisa em genômica e a biologia molecular no Brasil.
“Naquele tempo a genômica era o assunto. Todo mundo queria sequenciar alguma coisa. E todos, exceto o Estado de São Paulo, cometeram o mesmo erro: tentaram criar um instituto de genômica. Isso requer tempo, dinheiro e, geralmente, barganhas políticas. Quando nós concluímos o nosso genoma, todos ainda estavam tentando construir seus institutos”, afirmou Simpson, ressaltando que o objetivo do projeto foi alcançado seis meses antes do prazo determinado e a um custo menor que o previsto.
O sucesso da fase inicial possibilitou à chamada rede Onsa (sigla em inglês para Organização Virtual para Sequenciamento de Nucleotídeos) abraçar metas ainda mais ousadas. Em abril de 1999 teve início o Projeto Genoma do Câncer Humano (HCGP), o mais ambicioso do grupo. O objetivo era sequenciar genes expressos em tumores de grande incidência no país usando uma metodologia nova e desenvolvida no Brasil. O trabalho foi conduzido por 29 laboratórios e um centro de bioinformática, com recursos (US$ 20 milhões) fornecidos pela FAPESP e o Ludwig Institute for Cancer Research.
A necessidade é a mãe da inovação
Conhecida pelo acrônimo ORESTES (open reading frame expressed sequence tag), a técnica de sequenciamento usada no Projeto Genoma do Câncer Humano foi desenvolvida durante o doutorado de Emmanuel Dias Neto na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação de Simpson. Sem recursos para investigar o genoma do esquistossomo (Schistosoma mansoni) pelos métodos convencionais, o grupo criou uma estratégia alternativa baseada em PCR (reação da cadeia de polimerase) – equipamento que amplifica o DNA e permite detectar e medir genes específicos.
Dias Neto descreveu a técnica no periódico The Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) em 1997. Na mesma época, a convite do então diretor-presidente da FAPESP Ricardo Brentani, mudou-se para São Paulo e iniciou no Hospital A C Camargo (hoje chamado AC Camargo Cancer Center) um projeto de pós-doutorado focado no uso da metodologia ORESTES para estudo do câncer.
“Em 1999 nós submetemos o pedido de financiamento para o Projeto Genoma do Câncer Humano. No lançamento, Fernando Reinach (um dos idealizadores do Projeto Genoma FAPESP) disse: ‘Estou muito orgulhoso porque, no projeto da Xylella, estudamos um organismo pequeno, para o qual não tínhamos competidores e usamos a tecnologia mais tradicional. Dois anos depois, estamos desafiando o padrão estabelecido para sequenciamento do genoma humano. Usando uma tecnologia desenvolvida no Brasil, estamos indo para a área mais competitiva e para um genoma realmente grande’”, lembrou Dias Neto em palestra ministrada no workshop.
Enquanto os métodos considerados padrão-ouro na época focavam as extremidades dos genes, a metodologia brasileira permitia sequenciar a porção central, onde se localiza a informação genética. Com o avançar do projeto, ficou evidente que a ORESTES também era útil para identificar genes que não estão entre os mais abundantes nos tecidos humanos e, muitas vezes, passavam despercebidos nos estudos feitos com técnicas tradicionais. Inúmeras sequências inéditas foram geradas pelo grupo, contribuindo para o esforço internacional – conduzido entre 1990 e 2003 – que visava decifrar o genoma humano.
“Tivemos de inventar algo porque não conseguíamos fazer o que todo mundo estava fazendo. E no fim o que nós estávamos fazendo era melhor. Hoje concluo que não foi só um bom trabalho, como também um trabalho fortemente subestimado. Nossa contribuição para o sequenciamento dos genes humanos nunca foi realmente reconhecida”, disse Simpson.
Por meio da rede Onsa foram sequenciados mais de 1 milhão de fragmentos gênicos expressos (expressed sequences tags ou ESTs) provenientes de diferentes tumores humanos. Grande parte desses dados está disponível no Gene Bank, repositório mantido pelo National Center for Biotechnology Information (NCBI). Ainda hoje as informações geradas pelo grupo subsidiam projetos de pesquisa na área.
“Lembro de Andy [Simpson] uma vez me dizer: você pode passar o resto de sua vida trabalhando em algo que não é importante. Mas se você dedicar seu tempo e seu entusiasmo a algo relevante, eventualmente poderá fazer algo de bom”, contou Dias Neto no final de sua apresentação. “Temos de fazer big Science, temos de acreditar em nós mesmos”, acrescentou.
O segundo dia do Genome Workshop 20+2 também contou com a participação de Sergio Verjovsky, que coordenou um dos laboratórios da rede Onsa e hoje é pesquisador do Instituto Butantan. Ele falou sobre sua linha de pesquisa relacionada aos genes não codificadores. Por muito tempo essa parte do genoma foi considerada não importante e até chamada de lixo. Hoje se sabe que participa da regulação dos genes codificadores de proteínas.
Outro palestrante foi Rui Manuel Vieira Reis, diretor científico do Laboratório de Diagnóstico Molecular do Hospital de Amor (antigamente conhecido como Hospital do Câncer de Barretos). Ele contou que o banco de tumores mantido pela instituição foi criado a partir de uma sugestão de Brentani. Como o hospital atende pacientes de todo o país, o material armazenado tem grande diversidade genética e tem sido útil em muitos estudos relacionados à genômica do câncer.
A moderação foi feita por Anamaria Aranha Camargo, que integrou a equipe do HCGP e hoje é pesquisadora do Hospital Sírio-Libanês e membro da Coordenação Adjunta - Ciências da Vida na FAPESP.
Homenagem a Brentani
A última mesa do evento foi dedicada a homenagear o legado do professor Brentani, que faleceu em 2011 e é considerado um dos principais nomes no mundo em pesquisa oncológica. Entre os participantes estava Chi Van Dang, diretor científico do Ludwig Cancer Research, que apresentou um panorama sobre a evolução das pesquisas em genômica do câncer e contou como esse conhecimento tem ajudado a cuidar dos pacientes.
“Pretendemos usar a informação genômica para interceptar o desenvolvimento do câncer. Tenho participado de um esforço para criar um atlas pré-câncer para tumores de mama e de ovário relacionados à mutação no gene BRCA. A ideia é identificar pistas que indiquem lesões ainda muito iniciais nesses tecidos usando técnicas de sequenciamento de célula única, transcriptômica e proteômica. Esperamos que olhando para a genômica seja possível aprender com todos esses dados e interceptar – seja por estratégias farmacológicas ou imunológicas – o desenvolvimento da doença”, contou Dang.
Outras áreas que o cientista apontou como promissoras são relacionadas com biópsia líquida (que permite acompanhar a evolução do câncer por meio de exames de sangue) e a metagenômica do câncer, que estuda a influência do microbioma tanto no desenvolvimento de tumores como na resposta aos tratamentos.
“Creio que o estudo do microbioma do câncer é uma grande oportunidade, uma área em que nós – Ludwig e FAPESP – podemos atuar no futuro”, concluiu Dang.
A última mesa também contou com a participação de Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP; Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente da FAPESP; Paulo Hoff, diretor do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira (Icesp); e Giovanni Guido Cerri, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e ex-secretário da Saúde de São Paulo.
“Brentani sempre será lembrado, pois é uma das poucas pessoas que conseguiu, ao mesmo tempo, ser um cientista bem-sucedido, um formulador de políticas científicas e diretor do maior hospital do câncer de São Paulo em sua época”, disse Zago, lembrando ainda que Brentani dirigiu o braço paulista do Ludwig Institute for Cancer Research desde que foi criado, em 1986, até sua morte.
“Talvez seu legado mais duradouro seja derivado dessa posição de diretor do Ludwig Institute for Cancer Research. Isso tornou possível unir as duas instituições, Ludwig e FAPESP, em um dos programas de maior impacto dos 60 anos da FAPESP. O Projeto Genoma, como ficou conhecido, transformou o panorama científico do Brasil. A biotecnologia brasileira tem amadurecido a ponto de seus cientistas serem agora atores no palco internacional. As habilidades e conhecimentos que começamos a adquirir naquele momento são altamente valiosos hoje. O legado desse período se estende a todos os campos da pesquisa em ciências da vida”, afirmou Zago.
Veja também a íntegra das apresentações do segundo dia do Genome Workshop 20+2
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.