Notas acerca da inconstitucionalidade da PEC da escravidão
Alessandro Severino Valler Zenni
Caio Henrique Lopes Ramiro
Fernando Rodrigues de Almeida
“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos”. (DARCY RIBEIRO. O Povo Brasileiro).
Nas últimas semanas o noticiário brasileiro foi em alguma medida tomado pela triste – mas não espantosa, em sentido filosófico -, notícia da ocorrência de trabalho escravo em famosas vinícolas da região sul do país.
Em primeiro lugar, destaca-se que não observamos a linguagem técnico-jurídica do trabalho “análogo” a escravidão, uma vez que para enfrentar o tema importa recordar algumas questões do ponto de vista histórico.
Neste linear, é preciso considerar que além de um dos mais brutais regimes escravocratas do hemisfério ocidental, o Brasil foi o último território a abolir - em 1888 -, formalmente este modo de exploração do trabalho (Lei nº 3.353).
Desse modo, é preciso considerar que a Lei dá forma jurídica a uma relação social, no presente caso uma relação de dominação e exploração do trabalho humano sem reconhecimento de direitos, logo, parece algo discutível a ideia de analogia quando na realidade o que se verifica é o fato bruto e brutal da escravidão.
Neste sentido, apresenta-se importante observar o ano da festejada abolição, contudo, não para enaltecer uma controversa figura principesca ligada por sua linhagem ao decadente império português, mas, isto sim, para tirar do ocultamento a diáspora africana que colocou homens e mulheres (alguns reis e rainhas) na condição de escravos e, além disso, para lembrar que a liberdade foi uma conquista da resistência e da luta.
No primeiro momento, na resistência dos povos originários e, doravante, de homens e mulheres trazidos da África nos nefastos navios de traficantes de escravos e, além disso, de judiciosas contendas tão bem representadas por Esperança Garcia e Luiz Gama, que levaram a luta política concreta, por meio de petições e ações de liberdade, também para o campo judiciário, este último historicamente ocupado pelos filhos da casa grande.
Feitas estas considerações, torna-se imperioso examinar o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) capitaneado por Luiz Phillipe Orleans e Bragança, deputado federal por São Paulo, filiado ao PL e que se reivindica de linhagem monárquica. Aqui é preciso lembrar ao ilustre parlamentar um pouco da história do Brasil, isto significa dizer, alguns anos após a abolição formal da escravatura (1888) o país adotou, em 1891, a forma constitucional republicana, desvencilhando-se da monarquia.
De lá para cá - apesar de sombrios períodos autoritários e uma sucessão de golpes de estado -, a maioria dos documentos constitucionais manteve a forma republicana, inclusive a Constituição da República de 1988. Ainda, ressalta-se, conforme nos lembra Paulo Bonavides, que esta última é um documento constitucional de inspiração weimariana, significa dizer que o desenho normativo conforma um Estado Social e Democrático de Direito, com amplo reconhecimento de direitos sociais que têm no direito do trabalho sua imagem clássica.
Aliás, não se pode olvidar que o Estado Social é inaugurado após aferradas tensões entre as indústrias nascentes e a classe operária, isso porque a postura acanhada do Estado nas relações privadas – de mercado – permitiu a exploração da mais valia de maneira exponencial, a ponto de centenas de laboristas virem a óbito tendo como causa mortis a fadiga por excesso de trabalho, relacionando homens, mulheres e crianças na trágica saga do homo laborans moderno.
Nesse cenário de cizânias explode, de um lado, o Manifesto Comunista de Marx, denunciando a alienação do trabalhador e a ideologia jurídico-política reinantes, sugerindo igualdade e liberdade entre todos, a despeito da reificação do ser humano trabalhador, e por outra parte a Encíclica Rerum Novarum, onde o Papa Leão XIII reivindica a pessoa do operário no ambiente de trabalho, postulando a humanidade dos trabalhadores e a dissociação entre o sujeito que trabalha, digno de respeito e reconhecimento, e o objeto de sua execução (o produto do trabalho).
Surgem diretivas para que o Estado teça cláusulas mínimas de garantias trabalhistas nas relações laborais, eis a gênese do Estado social e democrático de direitos, surgindo positivação de normas jurídicas pelas Constituições mexicana, alemã e a criação da Organização Internacional do Trabalho com primeva Convenção Internacional de Direito do Trabalho dispondo sobre limites à jornada.
No Brasil o direito do trabalho deflui do espocar de inúmeras greves que se alastraram a despeito de disposições penais criminalizando o movimento paredista, estrangulando a posição política de uma classe submetida às pejorativas condições de faina. Após 400 anos de escravidão a Justiça do Trabalho no Brasil tem seu marco originário com a criação do Conselho Nacional do Trabalho na década de 20 do Século passado, até o surgimento da CLT em 1.943.
Antes, porém, Lei de Locação de Serviços regulamentando trabalho entre brasileiros e estrangeiros no período do Império, como, ainda, o Código Comercial relacionando parcos direitos trabalhistas aos empregados do comércio. Foi com a inauguração das fábricas em território nacional e a arrecadação de mulheres e crianças, sobretudo de origem italiana, associando-se aos acidentes de trabalho constantes que surge legislação regulamentando trabalho do menor de 18 anos, sem embargo das greves de operários em ferrovias, até que surge a Confederação Operária Brasileira inspirada na CGT francesa, em 1908, e com isso o espargir de reticentes manifestações anarco-sindicalistas, sempre requestando melhores condições de trabalho, até que a Lei Eloy Chaves concede estabilidade aos ferroviários com 10 anos de serviços, dando ensejo, ainda, à previdência social brasileira, sendo que esta última já tinha tímido esboço em caráter público na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de 1891.
Advém o Conselho Nacional do Trabalho em 1.923, vinculado ao Executivo, objetivando estabelecer um sistema de remuneração, contratos coletivos e a conciliação, sem descurar do trabalho de infantes e mulheres, e com a ascensão de Getúlio Vargas, e a Revolução de 30, cria-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, concomitantemente à Lei dos dois terços, cujo escopo era limitar engajamento estrangeiro e prestigiar os trabalhadores brasileiros no intuito de controlar altas taxas de desemprego. Pari passu criam-se direitos sociais como o reconhecimento das associações sindicais, controle financeiro pelo MT e seu intuito cooperativo com o Estado brasileiro.
No plano individual direito às férias, limite à carga de trabalho, instituição da CTPS e o registro respectivo, e na CF de 1.934, a positivação dos direitos sociais, com a instalação no art. 122, da Justiça do Trabalho afeta ao Executivo.
Em 1.941 é inaugurada a Justiça do Trabalho, em comemoração ao Dia do Trabalhador, sob espírito de harmonização dos interesses entre capital e trabalho e a prevenção de conflitos, sobretudo das greves. Em 1.946, surge o TST e os TRT´s, sendo que em 1.946 integra-se à Constituição a estrutura da Justiça do Trabalho que permanece até o momento coevo na Constituição de 1.988.
Não obstante, conforme noticiado na imprensa, a PEC que será proposta pelo deputado Orleans e Bragança tem por objetivo extinguir o Ministério Público do Trabalho. Importa considerar que o MPT tem suas origens lastreadas no ano de 1923, aparecendo em conjunto com a Justiça do Trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho.
De saída, é possível verificar que o deputado proponente era da base aliada do nefasto último governo brasileiro (2019-2022) que defendia abertamente uma visão neoliberal-escravista nas relações de trabalho, sustentado no antigo e mofado discurso construído após 1945 pelo marginalismo austríaco.
Neste horizonte de perspectiva, o alvo é o desmonte do Estado Social de Direito, logo, ontem esteve na mira o Ministério do Trabalho e Emprego - fechado nos primeiros anos da gestão autoritária derrotada legitimamente nas urnas no último pleito eleitoral -, o que implica em menos potencial de fiscalização de práticas de escravidão.
Não obstante, hoje com a PEC que já encontra adeptos, em sua grande maioria da deputação de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul , pretende atingir um prestigioso órgão da estrutura judiciária nacional, pois o Ministério Público do Trabalho tem dentro de seu horizonte de atuação o combate ao trabalho escravo e, observando seus deveres funcionais, conseguiu a libertação 207 trabalhadores nas vinícolas de Bento Gonçalves-RS.
Contudo, o procurador do trabalho responsável pelo setor de combate ao trabalho escravo no MPT, Italvar Medina, alerta, em recente entrevista, que: “O número de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão teve crescimento significativo nos últimos dois anos, e foram vários os casos registrados durante esse período, em diferentes campos da economia”.
O aumento apontado se deve a um modelo de economia política que não trabalha com a perspectiva de inclusão de direitos e justiça social, mas, sim, com o fomento a agressiva competição individual e ampliação de segmentos monopolizados, com retirada de direitos sociais – o que se verifica quando da análise das reformas trabalhista e previdenciária -, dessa maneira, uma estratégia de solapamento dos direitos inclui o enfraquecimento de instituições de fiscalização.
Não parece arbitrário reconhecer no Projeto de Emenda à Constituição uma longa sombra que advém dos tempos dos antepassados do deputado federal ora proponente, isto é, dos tempos da casa grande. Por aqui, pode-se mesmo verificar o acerto do diagnóstico de Lima Barreto quanto a sociabilidade brasileira quando afirma, em seu Os Bruzundangas, que esta sociedade é caracterizada pela mediocridade, haja vista seu desejo tormentoso de “cavar dinheiro”. O literato carioca tem por alvo a classe dominante brasileira que não possui nenhuma “cultura acumulada” ou mesmo ambiente propício para cultivar o repouso do espírito para meditação acerca das altas coisas.
Além disso, nota-se a tentativa de resgate de cultura de poder que sobrepõe a imagem de mundo da casa e de seu chefe, ou seja, de um espaço doméstico que produz suas próprias disciplinas, em alguns casos “doces” formas de dominação patriarcal, combinadas com nada doces métodos como a chibata e o chicote. Em importante trabalho, A longa sombra da Casa, Airton Seelander coloca em questão o conceito de casa e nos ajuda a verificar que esta imagem conceitual diz respeito a uma estrutura socioeconômica, política e familiar compreendida como unidade básica da comunidade, naturalizado como modelo de organização do Estado. Por esta via, nota-se a construção do patriarcado, ou seja, o império do pater famílias que funciona como uma autarquia econômica, sendo que esta última mantém sua autonomia em face do Estado e do interesse público, justificando-se neste episódio como o resgate da ordem escravocrata.
Ora, a partir de tais coordenadas é possível verificar que o argumento que serve de motivação da proposta tem por fundamento a versão tupiniquim do fascio-neoliberlaismo, isto é, pretende servir como o golpe final ao varguismo, projeto econômico-político iniciado nos anos de 1990 e levado adiante em sua vertente fascista-autoritária no último mandato presidencial (2019-2022), da qual participou o deputado federal proponente, como integrante da base de sustentação do governo.
Não obstante, conforme noticiado na imprensa, no fundo do projeto o alvo não é só o Ministério Público do Trabalho, mas, também, toda a estrutura judiciária trabalhista (Varas do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho).
Dessa forma, a PEC escravidão de Orleans e Bragança pretende revogar a Lei Áurea (Lei nº 3.353), bem como afronta os artigos 6 a 11 e, ainda, 92, inciso IV da Constituição da República de 1988 e, ainda, atinge a Lei Complementar nº 75/93 e Lei nº 8.625/93.
Assim, torna-se imperioso ressaltar a flagrante inconstitucionalidade de referida proposta por violação direta do texto constitucional nos dispositivos apontados e, acrescente-se a isso, a proteção dos mencionados direitos, reconhecidos como cláusulas pétreas, conforme dispõe o artigo 60, § 4º, uma vez que referidas cláusulas protegidas pela ordem constitucional não podem ser objeto de modificação, inclusive pela via da emenda à Constituição.
Portanto, é preciso recuperar a memória da tradição dos oprimidos, da luta e da subversão dos homens e mulheres que foram escravizados, para que a sua potência se coloque ao lado da resistência contemporânea a PEC da escravidão, mais uma nefasta proposta dos filhos da casa grande brasileira que pretende violar não os dispositivos supramencionados, mas, também, o princípio da proibição de retrocesso dos direitos fundamentais. Logo, vale finalizar com Darcy Ribeiro, no seu já clássico “O povo brasileiro”, pois o projeto do deputado Orleans e Bragança nos coloca diante da mais terrível de nossas heranças.