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O Papa: "lepra da alma", uma doença que nos torna insensíveis ao amor

Francisco presidiu a missa de canonização da primeira santa argentina, Mama Antula, com milhares de fiéis vindos de seu país e também o presidente Milei. Na homilia, convidou a redescobrir "a alegria de nos doar aos outros, sem medo nem preconceito, livres de formas de religiosidade anestesiante e desinteressada da carne do irmão".


Mariangela Jaguraba - Vatican News

O Papa Francisco presidiu a missa de canonização de Maria Antónia de San José de Paz e Figueroa, mais conhecida como Mama Antula, na Basílica de São Pedro, na manhã deste domingo, 11 de fevereiro, Dia Mundial do Enfermo.  A primeira Leitura e o Evangelho deste domingo "falam da lepra, uma doença que causa a progressiva destruição física da pessoa e que muitas vezes, infelizmente, ainda está hoje associada em certos lugares com atitudes de marginalização". "Lepra e marginalização são dois males de que Jesus quer libertar o homem que encontra no Evangelho", disse Francisco em sua homilia.


"Aquele leproso é obrigado a viver fora da cidade. Fragilizado pela doença, em vez de receber ajuda dos seus concidadãos, é abandonado a si mesmo, acabando duplamente ferido pelo afastamento e a rejeição", sublinhou o Pontífice. As pessoas mantinham distância dele, pois tinham medo de serem contagiadas e ficarem como ele. Mantinham distância também por preconceito, pois pensavam que fosse "um castigo de Deus por alguma falta que ele cometeu, e também por uma falsa religiosidade, porque pensavam que tocar um morto tornava a pessoa impura, e os leprosos eram pessoas cuja carne lhe «morria no corpo». Trata-se de uma religiosidade distorcida, que levanta barreiras e mina a piedade", disse ainda o Papa.


«Lepras da alma»

"Medo, preconceito e falsa religiosidade: aqui estão três causas de uma grande injustiça, três «lepras da alma» que fazem sofrer uma pessoa frágil, descartando-a como qualquer desperdício", disse ainda o Papa, acrescentando que "não se trata de coisas só do passado".


“Quantas pessoas sofredoras encontramos nos passeios das nossas cidades! E quantos medos, preconceitos e incoerências, mesmo entre quem acredita e se professa cristão. Esses medos continuam ferindo essas pessoas ainda mais! Também no nosso tempo há tanta marginalização, há barreiras a serem derrubadas, «lepras» a serem curadas.”


"Mas como?", perguntou Francisco, indicando como resposta dois gestos que faz Jesus: tocar e curar.


Jesus sente compaixão daquele homem, para, estende a mão e o toca.


O Senhor poderia evitar de tocar naquela pessoa; bastava «curá-la à distância». "Mas Cristo não pensa assim; o seu caminho é o do amor, que o faz aproximar de quem sofre, entrar em contato, tocar as suas feridas. A proximidade de Deus. Jesus está próximo, Deus está próximo. O nosso Deus, queridos irmãos e irmãs, não se manteve distante no céu, mas em Jesus fez-se homem para tocar a nossa pobreza. E perante a «lepra» mais grave, que é o pecado, não hesitou em morrer na cruz, fora das muralhas da cidade, rejeitado como um pecador, como um leproso, para tocar a fundo a nossa realidade humana. Um santo escreveu: «Ele se tornou leproso por nós»", sublinhou Francisco.

Veja o vídeo breve da missa

 

 O Papa convidou a tomar cuidado com a «lepra da alma».


“Uma doença que nos torna insensíveis ao amor, à compaixão, que nos destrói com as «gangrenas» do egoísmo, preconceito, indiferença e intolerância.”


"Tenhamos cuidado", advertiu ele, "também porque, como acontece na fase inicial da doença com as primeiras manchas de lepra que aparecem na pele, se não se tomar medidas imediatas, a infeção cresce e torna-se devastadora".


Deixar-se tocar por Jesus na oração e na adoração

"Diante desse risco, da possibilidade dessa doença em nossa alma, qual é a cura?", perguntou o Pontífice. A resposta se encontra no segundo gesto de Jesus: curar. "De fato, aquele seu «tocar» não indica apenas proximidade, mas é o início da cura. A proximidade é o estilo de Deus: Deus é sempre próximo, compassivo e terno. Proximidade, compaixão e ternura. Este é o estilo de Deus. Estamos abertos a isso? Pois é deixando-nos tocar por Jesus que nos curamos intimamente, no coração. Se nos deixarmos tocar por Ele na oração, na adoração, se Lhe permitirmos agir em nós através da sua Palavra e dos Sacramentos, o seu contato muda-nos realmente, cura-nos do pecado, liberta-nos de fechamentos, transforma-nos para além daquilo que podemos fazer sozinhos, com os nossos esforços", disse ainda o Papa.


“As nossas partes feridas, as do coração e da alma, as doenças da alma devem ser levadas a Jesus. É isto que faz a oração; não uma oração abstrata, feita apenas de repetição de fórmulas, mas uma oração sincera e viva, que depõe aos pés de Cristo as misérias, as fragilidades, as falsidades, e os medos.”  "Eu deixo Jesus tocar as minhas «lepras», para que me cure?", perguntou o Papa. "   Ao «toque» de Jesus", respondeu Francisco, "retorna a beleza que possuímos, a beleza que somos; a beleza de ser amados por Cristo, redescobrimos a alegria de nos doar aos outros, sem medos e sem preconceitos, livres de formas de religiosidade anestesiante e desinteressada da carne do irmão; retoma força em nós a capacidade de amar, para além de todo e qualquer cálculo e conveniência". Vive-se a cada dia a "caridade sem alarde: na família, no trabalho, na paróquia e na escola; na rua, no escritório e no mercado; a caridade que não busca publicidade nem precisa de aplausos, porque ao amor basta o amor".


"Proximidade e discrição", é o que Jesus nos pede, e "se nos deixarmos tocar por Ele, também nós, com a força do seu Espírito, poderemos tornar-nos testemunhas do amor que salva", como nos ensinou Santa Maria Antónia de San José, conhecida como «Mamã Antula».


“Ela foi uma viajante do Espírito. Percorreu milhares de quilômetros a pé, por desertos e estradas perigosas, para levar Deus. Hoje, ela é um modelo de fervor e audácia apostólica para nós. Quando os jesuítas foram expulsos, o Espírito acendeu nela uma chama missionária baseada na confiança na providência e na perseverança.”


Ela invocou a intercessão de São José e, para não cansá-lo muito, também a de São Caetano Thiène. Por essa razão, introduziu a devoção a este último, e sua primeira imagem chegou a Buenos Aires no século XVIII. Graças a Mama Antula, esse santo, intercessor da Divina Providência, entrou nas casas, nos bairros, nos meios de transporte, nas lojas, nas fábricas e nos corações, para oferecer uma vida digna por meio do trabalho, da justiça, do pão de cada dia, na mesa dos pobres. Peçamos hoje a Maria Antónia, Santa Maria Antónia de Paz de San José, para que ela nos ajude muito.


"Que o Senhor abençoe a todos nós", concluiu o Papa.

Ultradireitista Javier Milei vence as eleições argentinas

Futuro presidente venceu disputa acirrada no segundo turno

@Reuters/Agustín Marcarian

@Agência Brasil 🇧🇷 

O candidato de ultradireita Javier Milei será o futuro presidente da Argentina pelos próximos quatro anos. Com 98,21% das urnas apuradas, ele está matematicamente eleito com 55,75% dos votos, contra 44,24% do candidato governista e atual ministro da Economia, Sergio Massa.


Ao votar no início da tarde, Milei disse que “tudo o que tinha de ser feito já foi feito” e a hora de as pessoas falarem tinha chegado, “apesar da campanha do medo”. O candidato da coalizão La Libertad Avanza disse que o momento era de esperança, para impedir o que chamou de “continuidade da decadência”.


Economista, Milei se caracteriza por ser um candidato antissistema num país abalado por uma grave crise econômica, onde a inflação chegou a 142,7% nos 12 meses terminados em outubro. Ele promete dolarizar a economia e extinguir o Banco Central argentino para acabar com a inflação, mas amenizou outras promessas no segundo turno, prometendo não privatizar a saúde e as escolas públicas.


Alçado à fama como comentarista econômico em programas de televisão, Milei se diz amante de cães e, segundo a mídia argentina, tem vários clones de um cachorro que viveu de 2004 a 2017. Embora tenha se aliado a políticos da direita tradicional no segundo turno, como o ex-presidente Mauricio Macri e a candidata derrotada Patricia Bullrich, o candidato vencedor atraiu o voto sobretudo dos mais jovens ao se posicionar contra aos políticos tradicionais, que chama de “a casta”.


Durante a campanha, Milei foi comparado a políticos antissistema como o ex-presidente norte-americano Donald Trump e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. O futuro presidente argentino define-se como libertário e anarcocapitalista e declarou-se defensor de ideias como a comercialização de órgãos e a livre venda de armas. Durante o segundo turno, criticou o Papa Francisco, a quem chamou de comunista.


Brasil

Pelas redes sociais, antes mesmo da confirmação da vitória de Milei, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parabenizou as instituições argentinas pela condução do processo eleitoral, bem como ao povo argentino pela participação "de forma ordeira e pacífica".


Ainda sem saber quem seria o vencedor, Lula desejou sorte ao próximo governo. "Desejo boa sorte e êxito ao novo governo. A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos". O presidente brasileiro ainda não se manifestou após a confirmação do resultado no país vizinho.


* com informações da Agência Télam

Argentinos começam a votar no segundo turno das eleições


Seções ficarão abertas até as 18h, resultado sai por volta das 22h30



@Reuters/Mariana Nedelcu

Agência Brasil 🇧🇷 

Até as 18h, cerca de 35,4 milhões de eleitores argentinos terão votado no segundo turno das eleições presidenciais. Num cenário de profunda crise econômica, com inflação de 142,7% em 12 meses, os candidatos Sergio Massa, atual ministro da Economia, e o ultradireitista Javier Milei travam uma disputa acirrada.




A votação começou às 8h. Mesmo com a previsão de fechamento das seções às 18h (horário de Brasília e local), quem estiver na fila após o horário poderá votar, mas será proibida a entrada de novos eleitores. A expectativa é que o resultado parcial seja conhecido entre as 22h e as 22h30, mas os primeiros números só são divulgados após “um número representativo” de votos apurados, o que está previsto para ocorrer por volta das 21h.




No sistema eleitoral argentino, a contagem apresentada no dia da votação é provisória, com números baseados nos boletins das seções eleitorais divulgados pela Direção Nacional Eleitoral, do Ministério do Interior. O resultado oficial, baseado na contagem manual das cédulas, leva até duas semanas para sair.




A votação ocorre numa cédula única de papel, onde o eleitor registra as preferências. Pela legislação atual, as primárias argentinas ocorrem em agosto, o primeiro turno em outubro e o segundo turno em novembro. As datas são definidas pela Junta Nacional Eleitoral, órgão equivalente ao Tribunal Superior Eleitoral na Argentina.




Representações diplomáticas

No Brasil, cerca de 23 mil eleitores argentinos que mudaram o domicílio eleitoral até 25 de abril estão aptos a votar. Para eleitores que vivem em outro país, a votação é facultativa. Os cidadãos argentinos em trânsito que não residam no exterior ou não mudaram o domicílio eleitoral têm 60 dias para justificar a ausência. A justificativa pode ser feita tanto na embaixada como nos consulados.




Nas representações diplomáticas, a ata de votação assinada pelos mesários é enviada virtualmente por um sistema eleitoral. Em dois dias úteis, todo o material eleitoral – cédulas e atas originais, são enviados por correio diplomático, para a contagem definitiva dos votos.

Em meio a crise econômica, argentinos escolhem presidente no domingo

Preço dos alimentos subiu mais de 150% em um ano



Reuters/Direitos Reservados 

@Agência Brasil 🇧🇷 

O eleitorado argentino prepara-se para ir às urnas escolher um novo presidente no próximo domingo (22), em meio à maior crise cambial das últimas décadas e a uma disparada da inflação. São mais de 35 milhões de cidadãos aptos a votar.  


Determinante na escolha do eleitor, a situação econômica tem se agravado na reta final da campanha, que se encerra amanhã (20). A inflação chega aos 138,3% anuais, de acordo com a divulgação mais recente, realizada em 12 de outubro. Desde o início do ano, o preço dos alimentos subiu mais de 150%.  


O peso argentino também tem acentuado seu declínio ante o dólar. Dois dias antes dos dados oficias de inflação serem divulgados, o valor de um dólar americano rompeu pela primeira vez o patamar de 1 mil pesos no câmbio paralelo, aquele que verdadeiramente vigora nas ruas do país, pela primeira vez.  


Desde então, o câmbio tem se mantido próximo da marca histórica, pressionando ainda mais a inflação e jogando famílias inteiras na pobreza, flagelo que já atinge mais de 40% da população do país.  


Ainda que a piora da crise sem dúvida impacte a opinião pública, especialistas ouvidos pela Agência Brasil destacam que os problemas vividos pelos argentinos remontam há pelo menos duas décadas, e que as experiências dos últimos dez anos devem ser determinantes na hora de depositar o voto na urna, sobretudo entre o eleitorado jovem.  


Isso porque as duas correntes predominantes da política argentina – o peronismo e o antiperonismo – se alternaram nos últimos dois governos, sem que nenhum dos lados conseguisse conter a deterioração da economia, frisou Miriam Saraiva, professora de Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


“Tivemos dois governos sequenciais – o primeiro do partido do Mauricio Macri, o outro do Partido Socialista, de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner – e os dois não conseguiram controlar a situação econômica”, ressaltou Saraiva. “O que a gente vê é um certo desgaste das duas alternativas tradicionais na Argentina”.  


Foi na esteira desses dois fracassos que cresceu o nome do economista Javier Milei, mais votado nas primárias de agosto, quando os argentinos escolheram quem seriam os candidatos da corrida presidencial.  


Liberalismo

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei costuma se expressar com bastante estridência e se coloca como representante de um liberalismo extremo. Entre suas propostas estão a redução drástica de subsídios e do aparato estatal, bem como a dolarização da economia, medida vista como inviável por economistas menos radicais.  


O discurso dele ecoa sobretudo entre os mais jovens, que não viveram as grandes crises do início dos anos 2000, quando choques de desvalorização cambial levaram ao chamado “curralito”, uma corrida para sacar dinheiro dos bancos, que então fecharam as portas. 


Na Argentina, é permitido votar a partir dos 16 anos, e os jovens, sobretudo homens, grupo dos mais atingidos pelo desemprego, tem apostado em Milei como um voto rebelde e de aposta na incerteza, avalia Raphael Seabra, professor do departamento e Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (UnB). 


“Ele acusa toda casta política por todos os males do país, e sabe usar muito bem as redes sociais, coisa que a esquerda e a direita tradicional não sabem”, aponta o acadêmico. “Para uma juventude que nasceu no inicio da década de 2000, que sempre viveu sob o kirchnerismo ou o macrismo, e nenhum dos dois deu uma solução para o drama argentino, surge um personagem que se diz fora dessa coalizão. Para essa juventude, o Milei parece uma aposta viável.” 


Esquerda e direita 

A disparada na desvalorização do peso no dia seguinte à vitória de Milei nas primárias, contudo, é um indicativo de que as incertezas trazidas por sua candidatura podem não ser tão palatáveis para o eleitor mais velho e urbano, que vive em Buenos Aires, mais próximo das elites econômico-financeiras do país. 


Pelas pesquisas de intenção de voto, os outros dois candidatos - representantes do macrismo e peronismo kirchnerista - disputam a liderança, todos com chances de irem a um eventual segundo turno, ainda que Milei apareça ligeiramente à frente dos demais. 


De uma lado está Sergio Massa, do partido peronista União pela Pátria, atual ministro da Economia da Argentina. Trata-se de um político experiente, advogado, que conquistou as primárias de seu partido depois da terceira tentativa. Ele já foi também presidente da Câmara dos Deputados. 


Curiosamente, Massa não ficou identificado como responsável pela crise atual na Argentina, apesar de ter assumido a pasta da Economia há um ano, já diante de um descontrole cambial. “Ele ficou mais identificado como uma espécie de bombeiro, alguém confiável para tocar o barco quando a coisa sai de controle”, avalia a pesquisadora Miriam Saraiva. 


Do lado conservador está Patricia Bullrich, da coalizão Juntos pela Mudança. Ex-ministra da Segurança do governo Macri (2015-2019), a cientista política e jornalista é nascida em Buenos Aires e proveniente de uma aristocrática família argentina, com ligações centenárias no comércio de gado.  


Envolvida na política desde a adolescência, ela se apresenta como uma liberal linha dura, convertida após um passado ligado à Juventude Peronista. 


Regras

Para vencer no primeiro turno das eleições, é preciso que um dos candidatos receba ao menos 45% dos votos válidos - excluídos votos brancos e nulos. Pela constituição argentina, a vitória em primeiro turno também ocorre caso algum dos candidatos receba apenas 40% dos votos válidos, mas com uma diferença de pelo menos dez pontos sobre o segundo mais votado. 


Até o momento, as pesquisas não apontaram a ocorrência de nenhuma das situações e indicam um provável segundo turno. 

Da Tragédia ao Milagre dos Andes, uma lição de vida 50 anos depois

Os últimos oito sobreviventes da queda do avião da Força Aérea Uruguaia nos Andes, na América do Sul, se amontoam na fuselagem da embarcação na última noite antes do resgate, em 22 de dezembro de 1972. AP


  • Publicado em: 13/10/2022 - 18:38 / Modificado em: 13/10/2022 - 20:04

Considerada uma das lições de sobrevivência mais espetaculares da História e um dos episódios mais comoventes do século XX, aquela que começou como a "Tragédia dos Andes" e que terminou como o "Milagre dos Andes", completa 50 anos com o mesmo magnetismo de 1972 que transformou estudantes e jogadores de rugby em lendas.


Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires


Foi numa sexta-feira, 13 de outubro de 1972, quando o avião da Força Aérea uruguaia chocou contra uma montanha na Cordilheira dos Andes, impondo aos jovens sobreviventes adversidades extremas como fome, frio de 30ºC abaixo de zero, ar rarefeito, avalanche e até antropofagia, enquanto o mundo os considerava já mortos.


Os ingredientes da tragédia atraíram escritores, músicos e cineastas: são 26 livros, nove documentários, três filmes e algumas canções. A NetFlix também se prepara para lançar uma grande produção em comemoração aos 50 anos.


"Neste 13 de outubro, são 50 anos da Tragédia dos Andes. São 50 anos de um avião que colide contra uma montanha com 45 pessoas das que não se saberá mais nada durante 72 dias e todos pensam que estão todos mortos até que, em 21 de dezembro, surge um milagre. O mundo errou. Havia sobreviventes e isso é um milagre", descreve à RFI Roberto Canessa, um dos passageiros do avião que, aos 19 anos, atravessou a Cordilheira dos Andes em condições precárias, sem equipamento e sem conhecimento para avisar ao mundo que os seus amigos estavam vivos na montanha.


A colisão

Estava previsto que o bimotor de turbo hélice Fairchild 571 da Força Aérea do Uruguai voasse de Montevidéu até Santiago, no Chile, para que os estudantes jogassem um amistoso de rugby.


O mal tempo os obrigou a uma mudança de planos: em vez de um voo direto, era preciso pernoitar na cidade argentina de Mendoza. No dia seguinte, o mal tempo continuava, mas o avião decolou.


A potência para voar em altura era limitada. Exatamente nesse ponto, a Cordilheira se eleva a 6.000 metros de altura, erguendo-se o Aconcágua, o teto do continente americano. Para atravessar, então, era preciso desviar por um ponto ao Sul no qual as montanhas chegam a 4.000 metros.


Minutos depois, a 4650 metros de altura, o avião chocou-se contra uma montanha. Foi um erro de rumo do co-piloto. De tão brutal, o choque partiu a aeronave em duas, inaugurando a "Tragédia dos Andes".


Os protagonistas não tinham roupa para o frio, não conheciam a neve pela qual estavam cobertos e vinham de um país cujos maiores morros rondam os 500 metros de altura. Eram estudantes e jogadores do Old Christians Club, alguns dos quais acompanhados pelos pais.


Quando caíram, acreditavam que já estavam no Chile, mas ainda estavam em território argentino.


Vítimas e sobreviventes

Os que estavam sentados à frente e a tripulação morreram no ato. Os que sentavam atrás escaparam da morte imediata, mas teriam de lutar para sobreviver.


Com o impacto, morreram na hora 11 pessoas. Na noite do mesmo dia, outras cinco. Ao longo dos 72 dias, outras cinco pessoas morreriam como consequência dos graves ferimentos, da fome e do frio.


No dia 29 de outubro, 16 dias depois do acidente, outras oito pessoas morreram com uma avalanche que invadiu a fuselagem do avião, transformada em refúgio. Todos ficaram sepultados pela neve durante três dias. Sobreviveu quem conseguiu um pequeno espaço para respirar.


"Esse foi o momento mais difícil. Depois de termos sobrevivido durante os 16 primeiros dias, uma avalanche levou a vida de oito. Morreram os meus dois melhores amigos. Foi um momento dramático. Foi como se Deus nos desse as costas", contou à RFI Carlos Páez, então com 18 anos, quem faria 19 durante o gélido calvário.


Dos 45 passageiros e tripulantes, 29 morreram. Apenas 30%, 16 pessoas, sobreviveram num estado de extrema fragilidade. Os 29 mortos permanecem enterrados na Cordilheira.


"Esta é uma história extraordinária, totalmente atemporal, protagonizada por gente comum. Eu era um menino de 18 anos, de uma família abastada. Nunca tinha passado frio. Nunca tinha passado fome. Olho para 50 anos atrás e penso que aconteceu com outra pessoa, não comigo", diz "Carlitos", filho do falecido e célebre pintor uruguaio Carlos Páez Vilaró.


Carlitos tornou-se técnico agropecuário, empresário e palestrante. Viaja pelo mundo com 100 palestras anuais, mais de mil acumuladas, sobre a experiência vivida na montanha que conjuga trabalho em equipe, tomada de decisões vitais, tolerância diante da frustração, adaptação às mudanças e administração da incerteza com recursos próprios e desconhecidos até que surge a adversidade.


"Um dos grandes ingredientes desta história é a inconsciência da juventude. Não é politicamente correto, mas nós vivemos isso mais como uma aventura do que como uma tragédia. Seguramente, era um mecanismo de defesa", reflete.


Antropofagia

A decisão de comer carne humana dos cadáveres foi uma consequência natural da absoluta falta de alimentos. Aconteceu depois de dez dias sem comerem enquanto alguns morriam de fome. Foi um dilema moral e religioso que durou dias.


"Vínhamos de um processo de dez dias sem comer absolutamente nada e soubemos no décimo dia que não procuravam mais por nós. A decisão (de comer carne humana, cadáveres das vítimas do acidente) surgiu porque não havia alternativa. Qualquer um teria agido da mesma maneira. Se eu estivesse novamente nessa situação, não esperaria pelo décimo dia. Já no segundo dia, tomo a decisão", garante Carlitos.


"Nas últimas 70 ou 80 palestras que dei, lá pela metade, eu fiz a pergunta ao contrário. Pergunto ao público se alguém não teria feito o mesmo. Nunca ninguém levantou a mão", afirma.


"A religião ajuda a saber que a alma vai para um lado e que o resto é matéria. O papa da época, Paulo VI, não só nos mandou um telegrama de benção, como também um telegrama de congratulações, dizendo que agimos como verdadeiros cristãos porque Deus nos põe aqui para viver, não para morrer", revela. "O papa disse que até poderia ser considerado suicídio não tê-lo feito", sublinha.


O hoje cardiologista infantil Roberto Canessa, então estudante de Medicina, era o responsável por "fabricar água", convertendo a neve em estado líquido. Também tratava dos doentes e, como conhecia a anatomia humana, foi um dos responsáveis por cortar partes dos corpos em pequenos pedaços e colocá-las sobre a fuselagem para que se secassem ao sol. Foi também o primeiro a provar carne humana.


"Não fizemos nada para nos arrependermos. Levamos um pouco dos nossos amigos no corpo e na alma. Acredito que teria sentido essa honra se tivesse morrido e que me tivessem usado para viver. Eu sinto que eles nos transplantaram a vida", interpreta.


O outro estudante de Medicina para essa tarefa foi Gustavo Zerbino.


Definidos como mortos

Numa das malas, tinham encontrado um rádio transmissor, através do qual podiam apenas ouvir. Dez dias depois do acidente, ouviram que as operações de busca e resgate tinham acabado porque eram considerados mortos.


"Escutar pelo rádio que te decretam morto, que já não existes e que o mundo continua sem ti dá vontade de gritar 'estás vivo' e que 'por favor, continuem a procurar por nós', que não nos abandonem", recorda Roberto.


Foi nessa hora em que tudo mudou. Não existia mais a possibilidade de continuarem à espera de um resgate. Ou lutavam para sair ou ficariam para sempre. Era hora de agir mesmo sem forças, sem instrumentos, sem conhecimentos, sem condições.


"Elimina o grande dilema entre esperar o resgate ou sair para procurar ajuda. Se não conseguíssemos, não seria um fracasso porque o fracasso era onde estávamos. Com essa ideia, decidimos caminhar. Sabíamos que eram 70 Km para o oeste e que era preciso dar cem mil passos. Cada passo era um passo a menos que faltava. Com essa convicção, saímos. Já não aguentava mais, já me arrastava, o coração saía pela boca, mas olhava para trás e a fuselagem já estava muito distante. Aprendi que, quando desanimas, deves olhar de onde vens e onde estás para saber que vais bem", aponta Roberto.


Foram semanas de preparação para sobreviver a uma travessia com mais probabilidades de fracasso do que de sucesso. No dia 12 de dezembro, Roberto Canessa e Fernando Parrado foram em direção ao oeste, onde o sol se põe e onde fica o Chile.


"Além disso, Arturo Nogueira (falecido) me disse 'que sorte tens de ter as pernas saudáveis e de poder andar. E não és um parasita como eu que depende da tua coragem de sair a andar'. Isso me deu uma injeção de heroísmo, de esperança", relembra Roberto.


Se fosse hoje, bastaria um GPS para saberem que estavam mais próximos da civilização do lado argentino e que, a apenas 15 quilômetros dali, havia um refúgio de montanha.


Salvador sertajeno

No dia 20 de dezembro, oito dias depois, os dois avistaram um sertanejo, o chileno Sergio Catalán, quem estava a cavalo e ouviu os gritos. Era de tardinha, havia um rio entre eles e Sergio prometeu voltar no dia seguinte. Mesmo sem entender o que acontecia, cumpriu com a palavra.


"Ele tinha nos visto antes porque eles andam pelo alto da montanha. Nós íamos pela margem do rio. Ele pensou que estávamos caçando. Ficou intimidado. Quando lhe gritamos, ele não entendia nada. Já era tarde na montanha. Então, ele gritou: 'Amanhã, amanhã'. E foi o 'amanhã' mais maravilhoso da minha vida. De estar preso numa cadeia perpétua a que me disessem 'amanhã', abria-se uma esperança gigantesca", conta Roberto.


"Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou uruguaio. Há dez dias, estamos caminhando. Tenho um amigo ferido no alto (da montanha). No avião, há 14 pessoas feridas. Temos de sair rápido daqui. Não sabemos como. Não temos comida. Estamos fracos. Quando vão buscar-nos lá em cima? Por favor, não podemos nem andar. Onde estamos?", dizia o bilhete que Roberto e Fernando arremessaram ao camponês, quem, ao ler a nota, sinaliza que vai procurar ajuda.


Depois de avisar à Polícia, no dia 22 de dezembro, seis sobreviventes foram resgatados de helicóptero. No dia seguinte, os oito restantes.


"Recordo disso permanentemente como um feito lindo e maravilhoso. Espero o final do filme 'Vivos' (Alive) mil vezes para a chegada dos helicópteros (de resgate) porque foi a chegada da liberdade", diz Carlitos. "A grande mensagem desta história é que não nos encontraram. Nós fomos buscar os helicópteros. É uma diferença conceitual", destaca.


50 anos depois

A notícia que comoveu o mundo mantém-se vigente até hoje. Todos os anos, assim como este, rezam uma missa nos dias 13 de outubro em memória da "tragédia". Nos dias 22 de dezembro, comemoram o "milagre".


"A vida continuou. Cada um seguiu o seu caminho, mas nos dias 13 de outubro nos reunimos para uma missa e nos dias 22 de dezembro sempre fazemos uma celebração, agora com os nossos filhos e com os nossos netos, que já são mais de 100. Nós nos vemos permanentemente. À minha casa, vêm praticamente uma vez por mês. O engraçado é que só falamos sobre a Cordilheira. É uma espécie de terapia mensal que temos entre nós", revela Carlitos.


"Eu me considero um privilegiado. Essa possibilidade de sobreviver que os demais não tiveram me dá muita força. Eu ia visitar a mãe do Arturo Nogueira, quem morreu na montanha. E eu saía de lá e pensava na sorte que a minha mãe tinha com o seu filho de volta e saudável", desabafa Roberto.


"Eu consegui permanecer sem a contaminação dessa vida que temos todos os dias na qual se abrirmos uma torneira, sai água, na qual temos uma cama e temos comida. A vida, em momentos terríveis, pode catapultar-te a seres resilientes perante a adversidade. Podes fracassar na tentativa, mas não te render sem antes tentar", ensina.


"Quando eu estava na montanha, sentia saudade da vida porque lá tudo é neve, tudo é gelo. Não há nem moscas. Eu sentia falta da vegetação, das flores que eu sabia que floresciam na primavera e que me estavam faltando. Aprendi que mais do que medo de morrer, às vezes, tens pena de não continuar vivendo. Esse contraste de falta de vida foi o que me impulsionou", conclui Roberto Canessa.


Na semana passada, foi lançado um selo postal em homenagem ao 50º aniversário e o Banco Central do Uruguai anunciou que vai editar uma moeda em comemoração ao "Milagre dos Andes".

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