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Quem foi o primeiro a traduzir a Bíblia para o português



Edição de 1969 da Bíblia de João Ferreira de Almeida. EDISON VEIGA/BBC


Edison Veiga
De Bled (Eslovênia) para a
BBC News Brasil
Julho 2023


Se você já manuseou uma Bíblia, são grandes as chances de ter se deparado com o nome dele na folha de rosto: João Ferreira de Almeida. Ou, para usar a versão completa: João Ferreira Annes d’Almeida.


Trata-se de um português nascido em 1628 que, oriundo de família católica, tornou-se protestante e, aos 17 anos, conseguiu uma proeza: foi o primeiro a verter para o português os livros considerados sagrados que formam a Bíblia.


"Ele nasceu em Torre de Tavares, então reino de Portugal, viajou por várias regiões que tinham ligação tanto com Portugal quanto com os [hoje chamados] Países Baixos, viajou por regiões onde atualmente ficam a Indonésia e Malásia", conta à BBC News Brasil o historiador e teólogo Vinicius Couto, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, presbítero da Igreja do Nazareno e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista Livre.


A ligação de Almeida com a religião vem desde a mais tenra infância. Órfão, acabou criado por um tio, que possivelmente era sacerdote católico. "Segundo consta em alguns documentos e relatos de historiadores, esse tio era padre. E ele assumiu a responsabilidade da criação e do cuidado do Almeida", afirma à reportagem o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.



"O fato é que pouco se sabe a respeito da infância e da adolescência desse sujeito, mas ele teria recebido uma excelente educação, possivelmente sendo preparados para seguir a carreira religiosa, inclusive."


Aos 14 anos ele já estava na Ásia. Ali, acabou instalando-se na Batávia, a atual capital da Indonésia, hoje chamada de Jacarta. Naquela época a região era disputada entre portugueses e holandeses.


A cidade era o centro administrativo da Companhia Holandesa das Índias Orientais e, logo ao lado, Malaca, na atual Malásia, havia sido colônia portuguesa depois conquistada pelos holandeses.


"No ano seguinte, ele deixou a Igreja Católica e se converteu ao protestantismo", prossegue Maerki. Essa guinada foi fundamental na trajetória que Almeida teria como tradutor da Bíblia.


Por razões históricas, vale ressaltar. Afinal, no contexto da chamada reforma protestante, a partir da questão trazida por Martinho Lutero (1483-1546) e que abalou os alicerces do catolicismo de então, era importante que o fiel tivesse acesso aos textos bíblicos diretamente e em sua língua. Ora, isso motivou que uma série de traduções bíblicas fossem realizadas pelo mundo, sobretudo nos século 16 e 17.


Almeida ingressou na então denominada Igreja Reforma Holandesa sob esse contexto. E logo viu que havia uma lacuna a ser preenchida: até então, os crentes lusófonos não contavam com uma versão no seu idioma.


A conversão de Almeida ao protestantismo não foi acidental, mas sim fruto do contato que ele teve, em Batávia, com os membros da igreja holandesa. "[A conversão] foi depois da leitura que ele teve de uma obra que trazia uma perspectiva anticatólica, questionando pontos que o protestantismo [histórico] questiona em relação ao catolicismo", pontua Couto.


Trata-se de um manifesto intitulado 'Differença d’a Christandade'. E entre os ataques promovidos pelo panfleto à Igreja Católica estava um ponto que serviria de maior estímulo ao incipiente tradutor: o uso exacerbado do latim durante os ofícios religiosos, em detrimento de línguas vernaculares.


"A tradução da Bíblia para as línguas vernaculares é uma conquista da reforma protestante. Uma grande sacada dos protestantes foi justamente isso: traduzir a Bíblia para as línguas das pessoas, as línguas que as pessoas falavam", contextualiza à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.


É justamente por isso que Maerki define Almeida como um jovem "com ímpeto e desejo de mostrar o quanto estava de fato permeado pela atmosfera protestante, encantado com a Igreja Reformada".


"Porque nela, um dos elementos principais é justamente a tradução da Bíblia para o vernáculo", acrescenta.



Reprodução da capa da Bíblia traduzida por Almeida, em edição de 1681


Um processo cheio de dificuldades

A base da tradução de Almeida foi a consagrada versão em latim elaborada pelo teólogo protestante francês Teodoro de Beza (1519-1605). Mas não foi a única fonte — registros históricos indicam que ele, como é praxe em trabalhos do tipo, comparou sua versão com traduções feitas por outros autores.


"O Beza foi um teólogo que trabalhou bastante na arqueologia bíblica, com muitos comentários [em sua tradução]. Almeida utilizou isso, mas também usou as versões da Bíblia em castelhano, francês e italiano", ressalta Couto. "Nesse período, já tínhamos uma boa quantidade de traduções da Bíblia para outros idiomas."


Almeida terminou sua primeira versão do Novo Testamento em 1645, quando ele tinha, impressionantemente, apenas 17 anos. Ele pretendia que o material fosse publicado e, conforme afirmam alguns pesquisadores, chegou a enviá-lo para um editor em Amsterdã. "Entretanto, essa primeira versão do trabalho dele se perdeu", relata Couto.


O tradutor descobriu isso apenas em 1651, quando foi procurado por interessados em publicar a versão em português. Então decidiu recorrer aos seus rascunhos, preservados, para refazer o trabalho.


Dali em diante, houve intensos debates acerca da publicação ou não do seu trabalho, já que alguns que tiveram acesso aos manuscritos passaram a criticar fortemente a qualidade da tradução. Em 1656 ele foi ordenado pastor da Igreja Reformada e enviado ao Ceilão, hoje Sri Lanka. Ali, além de atuar como sacerdote, dava aulas de português para outros religiosos e ensinava o catecismo.


Em paralelo à sua atuação comunitária, dedicava-se a revisar a Bíblia.


"Seu texto chegou a ser publicado mas, logo em seguida, identificaram problemas de tradução. E tudo foi recolhido às pressas, para que não circulasse", afirma Couto. "Ele consegui pregar e fazer uso de alguns desses textos, mas uma equipe passou a se dedicar a revisar tudo."


Algumas dessas versões chegaram a circular. O Museu Britânico, em Londres, guarda um exemplar cuja impressão data de 1681. Mas ainda eram tiragens restritas e não consensuais entre os cristãos lusófonos.


Sobre a vida de Almeida, pouco se sabe. A maior parte dos textos biográficos aponta que ele teria se casado, no Ceilão, com uma mulher chamada Lucrécia Valcoa de Lamos. Assim como ele, ela também seria protestante de origem católica. O casal teria tido dois filhos, um menino e uma menina.


Sua vida foi cheia de conflitos, tanto com católicos quanto com grupos locais. Por suas pregações contra a Igreja Católica, enfrentou proibições do governo da Batávia, em 1657. Também experimentou sanções similares em Colombo, no atual Sri Lanka, entre 1658 e 1661.


Na então possessão portuguesa de Tuticurim, atualmente parte da Índia, os problemas foram com as populações locais. Ali, anos antes, uma comitiva da Inquisição havia promovido uma queima de seu retrato em praça pública, indicando aos habitantes que ele não era bem-visto pela Igreja Católica que tanto criticava.


No período de cerca de um ano em que ele foi pastor ali, sofreu as consequências. Moradores nativos se recusavam a ouvi-lo, e poucos aceitavam serem batizados ou terem seus casamentos abençoados pelo religioso.


Almeida morreu na atual Indonésia em 1691, com 63 anos. Não havia ainda concluído a sua tradução definitiva do Antigo Testamento e esse trabalho prosseguiu com um de seus colegas missionários, o pastor holandês Jacobus op den Akker (1647-1731).


Oficialmente, nem Akker nem Almeida viram a obra concluída. De acordo com a Sociedade Bíblica do Brasil, aquela que é considera a primeira edição da Bíblia completa em português foi publicada apenas no ano de 1753, em dois volumes. Já a primeira versão consolidada em apenas um volume data de 1819.


Uma curiosidade adicional à vida de Almeida é que muitas impressões antigas o creditam como "padre". "Na verdade ele nunca foi padre. Ele foi um pastor calvinista", frisa Moraes.



Reprodução de tradução publicada em 1899



Problemas de tradução

Até hoje muitas das versões da Bíblia em português trazem o livro de Gênesis da versão de Almeida. É o caso daquela conhecida como ARA, assim chamada porque é Almeida Revisada e Atualizada. Também há a Almeida Corrigida Fiel e a Edição Revista e Corrigida, entre outras.


"É uma referência em língua portuguesa, uma tradução muito boa. Mas é lógico que, com o passar do tempo, vai-se fazendo ajustes e isso também é importante de salientar", comenta Moraes.


O historiador e teólogo dá um exemplo sobre esses ajustes. Por exemplo, quando no Antigo Testamento são mencionados os filhos de Noé. "Antes dos anos 1990, eles eram chamados de Sem, Cão e Jafé. Então começaram a chamar de Sem, Cam e Jafé. Para não gerar nenhum estranhamento com a palavra 'cão'", exemplifica Moraes.


Outra passagem bastante conhecida também foi ajustada mais recentemente. Trata-se do Salmo 23, aquele do "o Senhor é meu pastor, nada me faltará".


Ali, as versões antigas continham a frase "a tua vara e o teu cajado me consolam". "Os tradutores [contemporâneos] mexeram nessa expressão, porque com 'vara' poderia se gerar uma situação jocosa", conta Moraes. A ARA traz "o teu bordão e o teu cajado me consolam".


O teólogo Couto também identifica problemas na tradução de Almeida. No relato da criação do mundo, no livro do Gênesis, por exemplo, o trecho em que Deus cria "o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança", é seguido da frase "e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra".


A ideia do ser humano "dominando" a natureza, se não incorreta, soa anacrônica aos tempos atuais, em que o discurso ambiental clama por cuidados ecológicos.


"A questão é que o verbo dominar vem do hebraico e essa tradução feita assim é muito pobre. Difícil encontrar uma tradução precisa, porque a ideia de domínio passa uma imagem de superioridade, sugerindo que o ser humano domina a natureza e esta lhe é inferior", comenta Couto.


"Mas, na verdade, a palavra original trazia uma conotação diferente, um sentido de mordomia responsável, querendo dizer que o ser humano seria quem deve cuidar da criação", explica o especialista.


O pesquisador Maerki ressalta outros trechos curiosos, alguns responsáveis, segundo ele, por "distorções".


"Um dos problemas apontados pelos estudiosos é a tradução da palavra ídolo, tanto do hebraico quanto do grego", afirma.


"Almeida traduz como escultura, como imagens em escultura, e não como ídolos. E isso acarreta justamente esse debate entre a tradição católica e a protestante sobre ter ou não imagens [sacras]. Foi um problema de tradução que originou um debate teológico", diz Maerki.


"Outro trecho curioso está no livro de Isaías, quando a palavra que originalmente no hebraico significa ‘moça jovem’ foi traduzida por ele como 'virgem', mesmo que no hebraico haja outra palavra para 'virgem'", aponta. Trata-se do trecho encarado como profético e utilizado pelo cristianismo, sobretudo católico, para justificar o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus: “eis que uma virgem conceberá, e dará à luz a um filho […]."


Probleminhas e problemões à parte, é unânime o reconhecimento de que o trabalho realizado por pioneiros como Almeida é digno de respeito pela dificuldade em se traduzir textos tão complexos em uma época antiga. “Não havia os recursos de hoje e o tradutor sempre têm de fazer opções. Estamos falando de textos que originalmente foram escritos em idiomas com estruturas e até caracteres diferentes, como o hebraico, o grego antigo…”, comenta Moraes.


"O trabalho desses homens que traduziam a Bíblia no passado é um trabalho digno dos maiores louvores porque, além dos conhecimentos que eles tinham de ter das línguas ditas originais: o grego, o hebraico, o próprio latim, e de outras versões que eles já usavam para cotejar e decidir as melhores opções de tradução, como o francês, o italiano, o inglês, essa era uma temática totalmente nova", acrescenta o professor, lembrando que a reforma protestante encabeçada por Lutero que havia aberto essas possibilidades não estava tão distante daquele tempo.

Quem escreveu a Bíblia?


Para os católicos, são 73 livros. Para os protestantes, 66. A Igreja Ortodoxa considera 78. E os judeus apenas 39, da parte conhecida como Antigo Testamento pelos cristãos.



Estamos falando do maior best-seller da história da humanidade, a Bíblia Sagrada, um compilado de textos com tradução para quase 3 mil idiomas — e, segundo estimativas da Sociedade Bíblica do Brasil, com mais de 3,9 bilhões de exemplares já vendidos no mundo.


Mas quem foram os autores que escreveram esses textos? Considerando que são documentos muito antigos, anteriores inclusive à noção contemporânea de autoria, é difícil cravar com precisão.


O ponto de partida para esta discussão é delimitar se o debate se restringirá a critérios religiosos ou partirá de princípios acadêmicos e científicos.


"É uma temática bastante espinhosa porque há duas visões. Prevalece ainda uma visão até certo ponto romantizada porque temos um tipo de teologia que é muito eclesial, com a pessoa estudando teologia porque quer ser pastor dentro de uma determinada comunidade, uma visão tradicional", analisa o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Segundo ele, a teologia voltada para o sacerdócio precisa "garantir que o texto é inspirado, ou seja, é dito pelo próprio Deus, através do Espírito Santo".


"Por outro lado, uma teologia acadêmica não está preocupada com isso e procura analisar o aparecimento desses documentos dentro do tempo histórico", pontua.


Neste sentido, podemos entender os primeiros livros da Bíblia, aqueles que compõem o chamado Pentateuco ou a Torá judaica, como um compilado de textos que começaram a ser escritos por volta de 1 mil anos antes da era Cristã.


São eles: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio — os textos que narram desde a criação do mundo até a morte de Moisés.

Como são documentos muito antigos, especialistas afirmam que é difícil cravar com precisão sua autoria


Torá

Pela tradição religiosa, estes cinco livros teriam sido escritos por um único homem, Moisés.


"Lendo e interagindo com o [poeta e tradutor] Haroldo de Campos (1929-2003), eu aprendi que há duas abordagens possíveis. A da sinagoga diz que quem escreveu a Torá foi Moisés e ponto final. 


A gente trata como se estivesse 'ouvindo' Moisés toda semana [com as leituras], e isso tem um valor moral dentro da comunidade", afirma o estudioso José Luiz Goldfarb, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor de cultura judaica do clube A Hebraica.


O viés científico, contudo, descarta a ideia de uma autoria única para estes livros.


"Do ponto de vista do estudo bíblico, estamos falando de mais de 600 anos de redação", contextualiza Goldfarb.


"Esta é a conclusão de análises do próprio Haroldo em cima de pesquisas bíblicas, arqueológicas, filológicas e poéticas."


Ele conta que uma análise minuciosa dos documentos permite agrupá-los pelo estilo, pelo vocabulário e pelas concepções em blocos associados a diferentes redatores em diferentes momentos históricos.


É uma ideia bem aceita.

"Sobre épocas e autores é muito complicado falar porque isso se perde no tempo. Investigações acadêmicas concluem que esses textos têm de 2,7 mil a 3 mil anos e, eventualmente, mais do que isso, já que eram transmitidos de maneira oral", diz o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo.


Segundo ele, estes textos foram canonizados — ou seja, reunidos e considerados integrantes da Bíblia hebraica — por volta do século 4 a.C.


"Mas mesmo aí há muitas discussões, e não dá para fechar o assunto", admite Lam.


Goldfarb vê uma vantagem neste aspecto coletivo e tão extenso de sedimentação dos textos.


"Se são 600 anos de escrita, isso é bom para quem gosta do mundo interpretativo. Quantas pessoas podem ter mexido no texto, criado pedaços em uma região, pedaços em outra?", indaga.


Em um tempo em que a própria noção de autoria era completamente diferente, este mesmo padrão de dificuldade de legitimar quem realmente escreve prossegue nos demais livros da Bíblia hebraica — conjunto que forma o Antigo Testamento da versão cristã.


A Bíblia Sagrada foi traduzida para quase 3 mil idiomas


"Por exemplo, os Salmos de Davi. É um livrinho que a gente usa muito nas orações diárias e traz os cânticos que Davi fazia no templo. Ele compunha, dizem que era músico e essas orações eram cantadas. Temos certeza? É uma boa pergunta: pelo que eu já estudei e li, eu não poria a mão no fogo…", afirma Goldfarb.


"Evidentemente que foram vários os autores dos textos bíblicos", diz Moraes.


"Muito provavelmente as histórias que hoje compõem o texto escrito, antes eram transmitidas de geração em geração de maneira oral. E aquilo permanecia como um tesouro cultural religioso daquele povo."


"Precisamos ainda observar que a noção de autoria na Antiguidade não é a mesma que temos hoje em dia. Naquela época, era comum atribuir um texto a uma grande liderança, a um líder carismático, a uma pessoa muito importante. Isso acabaria dando relevância ao escrito", completa o professor.


Neste sentido, seguidores de determinadas doutrinas, quando transformavam o conhecimento em documentos, costumavam sistematizá-los como se fossem algo escrito diretamente por seus mestres.


"No caso da Torá, quer dizer que esses textos foram escritos por Moisés? Muito provavelmente não. Talvez ele tenha tido alguma participação. Alguns acreditam que não teve participação nenhuma", acrescenta Moraes.


"Mas são textos atribuídos a Moisés."

Para ele, a importância disso é que os textos sagrados acabariam assumindo um aspecto identitário das religiões.


Literatura aplicada à Bíblia

Moraes acredita que faz muito mais sentido que os livros sagrados tenham sido escritos, por exemplo, depois do estabelecimento do Estado de Israel do que durante os episódios ali narrados, como a fuga do povo hebreu do Egito, sob o comando de Moisés.


"Imagina um grupo de pessoas perambulando pelo deserto. O que eles menos vão se preocupar é sentar para escrever. Quem está andando no deserto quer, na verdade, sobreviver. Em tantos anos, eles precisavam criar uma estrutura bélica para poder tomar a terra… Ninguém estava preocupado em ficar escrevendo texto", comenta.


São Paulo escrevendo suas epístolas em pintura do século 17


"Muito provavelmente isso só foi ocorrer depois do estabelecimento de uma sociedade mais organizada", diz o pesquisador.


Mas eram ainda histórias soltas, de gêneros literários diversos, que depois acabaram sendo amarradas, costuradas, por um ou mais redatores.


Estudioso de textos sagrados, Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos, é entusiasta da ideia de usar conhecimentos contemporâneos da literatura para procurar montar o quebra-cabeças dos documentos que compõem a Bíblia.


Segundo ele, autores como o professor americano Robert Alter, que leciona na Universidade da Califórnia, "acerta em cheio" quando propõe "o emprego de certas ferramentas da teoria literária para analisar o texto bíblico".


"Ele pensa na engenhosidade do texto, nas figuras de linguagem, nas variações do jogo de ideias, nas convenções que são usadas por cada gênero bíblico, por cada autor", afirma Maerki.


"Sempre com a preocupação de não cometer anacronismos."


Novo Testamento

A literatura também pode ser aplicada na análise dos evangelhos, os quatro livros que narram a vida de Jesus e são atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Pesquisadora de história do cristianismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros defende que, sim, os autores foram mesmo esses quatro homens.


"No caso dos Evangelhos, não se contesta [a autoria], pelo menos nos estudos recentes. Lembrando que dois de seus autores, Mateus e João, foram apóstolos de Jesus. Os outros dois, Marcos e Lucas, por sua vez, construíram a narrativa colhendo os testemunhos dos apóstolos", explica.


Maerki vê diferenças estilísticas fundamentais nestes quatro textos.


"Marcos é considerado um autor com estilo mais pedestre, com linguagem direta, mais simples. João tem uma linguagem complexa, mais figurada, cheia de simbolismos. Lucas tem uma linguagem mais aprimorada, mais sofisticada", ele pontua.


Se no Antigo Testamento há mais interrogações do que certezas no campo das autorias, os textos do Novo Testamento, embora mais recentes e com "autorias" descritas na maior parte deles, também despertam questionamentos.


É certo que todos esses textos começaram a ser produzidos cerca de 30 ou 40 anos após a morte de Jesus. Moraes diz que "muito provavelmente, todos esses nomes [dos quatro evangelistas] foram estabelecidos pela tradição".


"Não há nos documentos mais antigos o título nem o nome do autor", ressalta.


O que parece inquestionável é que o primeiro dos evangelhos é o de Marcos.


"No momento em que há uma geração, aquela que acompanhou pessoalmente a vida de Jesus, morrendo, há a necessidade de preservar de maneira escrita o que aconteceu. Então ele começa um gênero literário novo que é o evangelho", explica.


Coletando tradições e relatos orais, este evangelista sistematiza a narrativa de Jesus. Mas só usa a parte que naquele momento interessava: ou seja, não se preocupa em falar do nascimento ou da infância de Jesus; foca em sua missão, em sua morte, em sua mensagem de Páscoa.


"Ele é muito objetivo e produz um evangelho muito enxuto", comenta Moraes.


Apresentação da Torá em pintura do século 19


Quem era esse Marcos? O teólogo aponta para indícios de que era um seguidor do apóstolo Pedro.


"Mas outros vão dizer que era discípulo de Paulo. De qualquer forma, o que sabemos é que não foi um apóstolo de Jesus, direto", observa.


O evangelho de João também suscita dúvidas. Isto porque o texto fala em um "discípulo amado", e a tradição diz que este era João.


"Mas há teólogos que afirmam que talvez seja Lázaro, porque no evangelho há uma pista [na narrativa da morte de Lázaro] que diz que Jesus chorou 'e veja como ele o amava'", afirma Moraes.


Só no segundo século é que os cristãos passam a atribuir a autoria deste texto a João.


"A tradição consagrou, e até hoje chamamos de João. Mas não é fácil saber quem escreveu, talvez até tenha sido uma obra coletiva", diz Moraes.


Para o teólogo, o melhor é assumir a ideia de que se trata de "evangelhos segundo" cada um destes nomes, em vez de encará-los como autores, no sentido contemporâneo do termo.


Cartas

Mas se o assunto é o Novo Testamento, é preciso ressaltar o papel de Paulo, o apóstolo que escreveu diversas cartas para as primeiras comunidades cristãs.


"As cartas de Paulo, como o nome já evidencia, [foram escritas] por Paulo e seguidores de Paulo. A carta a Timóteo, por exemplo, muito provavelmente é posterior a Paulo, por isso é considerada por alguns estudiosos como sendo deuteropaulina", afirma Medeiros.


"Há, porém, controvérsias em relação às cartas atribuídas a Pedro que, ao que tudo indica, não foram escritas diretamente por ele. E a de Paulo aos Hebreus, que muito provavelmente foi completada por um de seus discípulos."


Entende-se que Paulo tenha sido o primeiro a escrever sobre Jesus, a partir do ano 57 ou 58.


"A grande questão é saber se ele tinha consciência de que estava escrevendo um texto sagrado. Provavelmente, não", avalia Moraes.


"Ele estava usando de um recurso para se comunicar com igrejas e deixa suas epístolas. Algumas se perderam, algumas que hoje chamamos de suas epístolas podem ter sido escritas por discípulos dele, mas fazem parte de um círculo paulino."


"Quando falamos das cartas de Pedro, muito provavelmente é do círculo petrino, até porque Pedro não sabia escrever, e ele deixa isso claro em sua [primeira] carta. Ele usa um redator para escrever. Provavelmente ditou a um auxiliar, chamado Silvano", explica o teólogo.


- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62962698

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