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Historiadora segue os passos dos modernistas brasileiros na Paris dos “anos loucos”

 A Semana de Arte Moderna completa 100 anos. Mas as ideias de uma arte genuinamente brasileira não foram o único ponto em comum do grupo de artistas que ocupou o Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Muitos deles, salvo o escritor Mário de Andrade, viveram em Paris uma intensa experiência de rupturas de padrões e a proposta de uma nova liberdade de criação.


Por Andréia Gomes Durão, da RFI


A aventura vivida por esses modernistas na capital francesa no período entre guerras, os chamados “anos loucos”, influenciaria em definitivo suas produções artísticas e o modo do Brasil ver sua própria cultura, além de dar visibilidade internacional a muitos talentos brasileiros.


Bairro emblemático de Paris, onde arte e boemia se misturam, Montmartre é um cenário que traduz muito dessa passagem. “Nossos modernistas passaram por aqui porque depois da célebre Semana de 22 muitos vieram para Paris, [...] como Tarsila [do Amaral] e Oswald [de Andrade], Victor Brecheret, Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti e Villa-Lobos, que vieram beber diretamente na fonte parisiense as últimas novidades em termos artísticos e literários”, conta a pesquisadora e escritora Marcia Carmargos, em entrevista à RFI.Clique na imagem acima para assistir a entrevista na íntegra



Ela acrescenta que foi em Paris que estes artistas brasileiros modernistas absorveram e retrabalharam, cada um a seu modo, os influxos das vanguardas europeias, incluindo Picasso, Leger, Braque, Jean Cocteau, Satie, André Lhote, Albert Gleizes, entre muitos outros. Com alguns deles, os modernistas brasileiros conviveram ou mesmo estudaram. “Foi no decorrer desse período que o grito iconoclasta da Semana [de Arte Moderna] foi sendo teorizado e construído para dar vida, corpo ao que hoje conhecemos como modernismo.”


O casal Tarsioswald


Próximo à Place de Clichy, vizinha ao bairro boêmio de Montmartre, também no norte da capital francesa, o número 9 da Rua Hégésippe Moreau abrigou o ateliê de uma das artistas-símbolo do Modernismo: Tarsila do Amaral, que não participou da Semana de 22 justamente por estar em Paris. Ao lado de Oswald de Andrade, ela forma o casal emblemático do movimento modernista, conhecido não somente por aproveitar intensamente a vida cultural parisiense, mas também por animar a vida social da cidade luz naqueles “anos loucos”.


“Neste ateliê, o celebrado casal recebia a nata da vanguarda, em almoços em que serviam pratos brasileiros regados a cachaça, que os ilustres convidados adoravam. Dentre todos os modernistas que estiveram aqui ao longo da década de 1920, eles eram os que tinham uma situação financeira mais tranquila, o que lhes permitia levar uma vida social agitada, usufruir do ambiente mundano e cultural da capital francesa,” comenta a escritora, que tem diversas publicações sobre o modernismo brasileiro, entre estas, "Semana de 22: entre vaias e aplausos" (Editora Boitempo).


Marcia descreve ainda algumas curiosidades sobre a vida social promovida pelo casal Tarsila e Oswald: “Foi num desses almoços que [Heitor] Villa-Lobos conheceu o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, amigo íntimo do casal, além do músico Erik Satie e Jean Cocteau. Vale a pena citar também Paulo Prado, que no prefácio do livro Pau-Brasil, escreveu, de forma irônica, como esses brasileiros acabaram descobrindo suas raízes nacionais nesse outro lado do Atlântico: ‘Oswald de Andrade, por ocasião de uma viagem a Paris, do alto de um ateliê da Praça de Clichy – umbigo do mundo –, descobre, maravilhado, a sua própria pátria’”.


“O bairro sossegado de Montparnasse”


Além de Montmartre e a Place de Clichy, Montparnasse foi outro importante bairro da vida cultural parisiense onde os modernistas marcaram presença. No n° 1 da Rua du Maine fica o Hotel Central, que acolheu outros artistas brasileiros. “Por ali passaram Di Cavalcanti, Anita Malfatti e [Victor] Brecheret, porque era bem localizado, próximo dos locais de trabalho, das escolas de pintura, dos restaurantes mais em conta, e oferecia quartos simples a um preço acessível aos bolsos dos modernistas, que tinham poucos recursos e estavam ainda decolando nas respectivas carreiras”, ela explica.


A pesquisadora cita que em uma das primeiras crônicas de Di Cavalcanti, que estava em Paris como correspondente do jornal carioca A Manhã, ele descreve em 7 de outubro de 1923 sua vida no bairro e onde estava hospedado: “Aqui estou no meu hotel. Vim para ele alegre como uma criança. Defronte, uma praça minúscula recebe meus primeiros olhares ansiosos. É o bairro sossegado de Montparnasse, cheio de artistas, de estudantes, de gente pobre e honesta. Minha Paris, boa noite!”.


Entre as muitas escolas de arte, academias e ateliês dos grandes mestres da época, onde não somente os modernistas brasileiros teriam oportunidade de produzir, mas também de realizar importantes trocas com artistas locais e de todas as nacionalidades, estaria a Académie Grande-Chaumière, localizada até hoje na avenida de mesmo nome.


“Nessa época, as academias eram bem populares e importantes, no sentido de democratizar o aprendizado das artes, as escolas como a Académie Colarossi, a Ranson, onde Di Cavalcanti estudou, e a da Grande-Chaumière. Elas tinham mensalidades acessíveis e eram voltadas para um ensino um pouco mais livre. [...] Já a Academie Julian oferecia certas vantagens para o ingresso de obras dos seus alunos nos Salons, e também preparava os candidatos para os concursos da École de Beaux-Arts.”


De acordo com Marcia, na Grande-Chaumière estudava gente de todas as partes do planeta, em uma convivência rica e cosmopolita: “Obviamente agora a academia não tem mais o glamour de antigamente, quando tinha, entre seus professores, Antoine Bourdelle, Fernand Léger e André Lhote”.


O ateliê do escultor Antoine Bourdelle, um dos grandes mestres da Paris dos anos 1920, foi frequentado pelo modernista ítalo-brasileiro Victor Brecheret. O espaço, na rua que recebe o nome do escultor francês, também em Montparnasse, abrigaria o Museu Bourdelle a partir de 1949.


“Brecheret tinha grande admiração por Bourdelle e com ele trabalhou, não exatamente como aluno, e sim como uma espécie de colega, em cujo ateliê ele praticava. Foi por intermédio dele que Brecheret conheceu Maillol e Bracusi.”


A escritora revela que “toda essa gente muito talentosa provocou nele [Brecheret] uma espécie de trauma logo na sua chegada, em 1921, com uma bolsa de cinco anos do Pensionato Artístico de São Paulo. Em contato com aquelas novas propostas estéticas, ele teve uma verdadeira ‘indigestão artística’, que iria levá-lo a rever a própria produção, confrontada com as experiências desses escultores. Ele escreveu a Mário de Andrade dizendo que sentia que alguma coisa se desfazia dentro dele, e que ele não podia continuar fazendo o que fizera até então, e não podia aceitar uma arte para a qual não se achava suficientemente preparado”.


“Se gostarem, ficarei. Senão, voltarei para minha terra”


Mas não foram só os artistas plásticos ou escritores que fizeram história na Paris dos “anos loucos”. A música brasileira também passa por grandes transformações. E o autor de uma verdadeira revolução da música nacional, inclusive por aproximar o popular e o erudito, morou no n° 11 da Place Saint-Michel: ninguém menos que Heitor Villa-Lobos.


“O maestro e compositor esteve aqui em Paris por duas vezes na década de 1920: de 1923 a 1924 e de 1927 a 1930, sempre hospedado nesse apartamento da Place Saint-Michel, emprestado pelos irmãos Guinle. E, ao contrário dos demais modernistas, que vieram aprender, estudar, ele chegou com um patrocínio do Governo Federal, justamente com o objetivo de representar o Brasil no Velho Continente. Por isso, ao desembarcar, em julho de 1923, declarou que não vinha para estudar, mas para mostrar o que já fazia: ‘Se gostarem, ficarei. Senão, voltarei para minha terra’”, teria dito o maestro, conta Marcia.


Mas além das escolas de arte e da vida cultural intensa da capital francesa nos anos 1920, eram também nos cafés que muito da vida social acontecia. O Boulevard Montparnasse abrigava alguns dos endereços preferidos de alguns modernistas, como o Café La Rotonde, Le Dôme e La Coupole.


“O célebre La Rotonde [...], assim como o Dôme, eram frequentados pelos modernistas mais endinheirados, como Tarsila e Oswald. Ele diria, mais tarde, nas suas memórias, que ali, sem saber, naquele tempo, talvez ele estivesse bebendo ao lado de Picasso ou de Appolinaire. Lá, Anita Malfatti e Brecheret, por exemplo, só se davam ao luxo de jantar quando convidados por Blaise Cendrars, pelo mecenas Paulo Prado ou pelo próprio Oswald. [...] a ‘colônia brasileira’ batia ponto no Gismond, uma pequena cantina italiana no limite extremo de Montparnasse”, explica Marcia.


A presença destes artistas na capital francesa dos anos 1920 foi objeto da sua mais recente pesquisa de pós-doutorado na Sorbonne, “Les modernistes brésiliens à Paris dans les années folles” (Os modernistas brasileiros em Paris nos anos loucos, em tradução livre), e será publicada em breve no Brasil e na França.

Semana de Arte Moderna "sintetiza trocas culturais entre França e Brasil nos anos 1920", diz historiadora


Por: Adriana Brandão / RFI

A Semana de Arte Moderna, cujo centenário é celebrado neste momento, é um marco da história cultural brasileira. Qual foi o eco desse movimento modernista brasileiro na França? Para a historiadora francesa Anais Fléchet, o evento passou a sintetizar “todas as trocas culturais da década de 1920” entre a França e o Brasil.


Anaïs Fléchet é professora da Universidade de Versailles Saint-Quentin em Yvelines. Ela é autora de vários livros e ensaios sobre as relações culturais entre o Brasil e a França, entre eles “Histoire Culturelle du Brésil” (IHEAL, 2019) e “Villa-Lobos à Paris: un echo musical du Brésil” (l’Harmattan, 2004). O músico brasileiro foi um dos vários modernistas que vieram passar uma temporada na capital francesa logo após a realização Semana de Arte Moderna, há cem anos.


O evento paulista buscava romper com os modelos culturais europeus para criar uma cultura genuinamente brasileira. Mas foi paradoxalmente em Paris “umbigo do mundo”, que os modernistas brasileiros “descobriram, deslumbrados, a sua própria terra", segundo a famosa frase de Paulo Prado sobre Oswald de Andrade.


Villa-Lobos não foi exceção e “se descobriu brasileiro e reinventou o nacionalismo musical” em Paris. Anaïs Fléchet explica que as composições que Villa-Lobos apresentou na Semana eram ainda “muito inspiradas em uma estética francesa do início do século 20, muito inspiradas no Debussy. A grade ruptura estética na obra dele aconteceu depois da Semana”.


Entre 1923 e 1930, Villa-Lobos passa duas longas temporadas na capital francesa. “Foi nesse vai e vem entre o Rio de Janeiro e Paris que ele criou uma nova estética muito mais assumida como brasileira. Claro que já tinha elementos disso na produção anterior dele, mas o evento catalisador não foi a Semana de Arte Moderna, mas a chegada em Paris logo depois em 1923”, aponta a historiadora.Vanguardas artísticas

Paris era nos anos 1920 a capital cultural do mundo e das vanguardas. “O movimento modernista se constrói como muito brasileiro, muito paulistano, mas ao mesmo tempo é um movimento que se insere numa história transnacional, global, das vanguardas artísticas. E nesse momento, o lugar onde as pessoas tinham que estar era Paris.”


A historiadora ressalta que outro elemento muito importante na época foi o impacto da Primeira Guerra Mundial. “Os franceses buscavam outras experiências. É como se a civilização francesa, a civilização europeia, tivesse morrido nas trincheiras. Tinha um apelo, uma busca de novos horizontes que se manifestou no primitivismo, por exemplo, que estava muito na moda.” 


Maior visibilidade da cultura brasileira

Os anos 1920 foram um momento importante para a cultura brasileira na França. “Antes da década de 20, a cultura brasileira era muito pouco conhecida na França. O Brasil era frequentemente confundido com a Argentina. Os franceses não sabiam onde ficava o país e sabiam muito menos sobre cultura brasileira. Tinha uma visão muito estereotipada e o modernismo ajudou a mudar essa representação, ao revelar obras de artistas brasileiros que estavam aqui, como Tarsila do Amaral, que trabalhou com Fernand Léger.” Outro artista brasileiro importante que marcou presença em Paris foi Di Cavalcanti.


Anaïs Fléchet aponta que “a visão dos franceses na década de 20 era modelada por um paradigma primitivista. O que interessava os franceses era o outro, era a cultura indígena, as tradições afro-brasileiras, toda essa parte da cultura brasileira que os modernistas revalorizaram. Foi um pouco essa aproximação entre cultura erudita e cultura popular, essa ideia da mestiçagem ou da antropofagia cultural, que atraiu os franceses na época e durante muito tempo depois aliás”.


Para a historiadora, a Semana de Arte Moderna acabou se transformando também em um marco das relações culturais entre a França e o Brasil.


“Não teve repercussão imediata, não foi um marco em 1922, mas com o passar do tempo virou um marco, um lugar de memória. É como se a semana tivesse sintetizado todas as trocas culturais da década de 1920. (...) Um momento importante entre a afirmação do modernismo brasileiro, afirmação de uma arte nacional, brasileira de verdade, e a busca de uma alteridade, de novos horizontes culturais do outro que era muito forte na França daquele período”, conclui Anaïs Fléchet.

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