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100 anos de Turquia: como caiu o Império Otomano, a superpotência que queria ser universal




A Turquia completa 100 anos em 29 de outubro


“Viva a República! Vida longa a Mustafa Kemal Pasha!", gritaram os legisladores turcos em 29 de outubro de 1923, depois de proclamarem um novo modelo de governo e empossar Kemal Atatürk como primeiro presidente do país que acabava de nascer.


Enquanto muitos comemoravam, outros ainda lamentavam a queda do Império Otomano, uma das maiores superpotências que a humanidade já conheceu.


Neste domingo (29/10), completam-se 100 anos desde o nascimento da Turquia e pouco mais de um século desde a queda definitiva do Império.


O golpe final foi desferido em novembro de 1922, quando a Grande Assembleia Nacional aboliu o cargo de sultão, encerrando aproximadamente 600 anos de história da dinastia Osmanli, a família que liderou o império desde sua fundação, em 1299, até a sua dissolução.


A queda da superpotência, que rivalizou com os países mais poderosos do mundo durante vários períodos da história, foi uma tragédia para os turcos.


O Estado otomano se expandiu por três continentes, governando o que hoje é a Bulgária, o Egito, a Grécia, a Hungria, a Jordânia, o Líbano, Israel, os territórios palestinos, a Macedônia, a Romênia, a Síria, partes da Arábia Saudita e a costa norte de África.


Muitos outros países como a Albânia, Chipre, Iraque, Sérvia, Qatar e Iêmen também eram parcial ou totalmente otomanos.


Em muitas destas nações, no entanto, o legado imperial é tão controverso que alguns preferem esquecê-lo. Em outras, como a Turquia, ele é recordado com nostalgia e como uma época dourada que gera orgulho.

Alerta: A BBC não se responsabiliza pelo conteúdo de sites externos YouTube conteúdo pode conter propaganda.

A dinastia Osmanli (ou Casa de Osman) começou com uma oportunidade aproveitada por Osman I, então líder do império Seljuk.


Ao notar a fraqueza de seu império e do vizinho Bizantino, Osman decidiu fundar seu emirado em 1299 na Anatólia, o território hoje conhecido como Turquia.


Ele se tornava assim o fundador e primeiro sultão de um Estado turco que logo começaria a se expandir até cobrir mais de 5 milhões de km2.


Os descendentes de Osman, cujo nome às vezes é escrito Ottman ou Othman e de onde veio o termo "Otomano", governaram a poderosa nação durante seis séculos.


A queda de Constantinopla

Olivier Bouquet, professor de História Otomana e do Oriente Médio na Universidade Paris Diderot, destaca que, em 1299, foi fundado apenas um “Estado Turco”.


O Império de fato começaria a tomar forma com a queda de Constantinopla, em 1453.


Com uma entrada simbólica em Constantinopla, montado em um cavalo branco, o sultão Mehmed II pôs fim a mil anos de Império Bizantino e posteriormente ordenou o assassinato de grande parte da população local, forçando o resto ao exílio.


Ele logo repovoou a cidade trazendo pessoas de outras partes do território otomano.


Mehmed II também renomeou Constantinopla para Istambul, a "cidade do Islã", e começou a reconstruí-la.


Assim, a cidade se tornou não só a capital política e militar do império, mas também, devido à sua posição no cruzamento entre Europa, África e Ásia, um importante centro comercial mundial.


A força econômica que o império ganharia deveu-se em grande parte à política de Mehmed II de incentivar o aumento da quantidade de comerciantes e artesãos no seu estado.


Ele encorajou muitos comerciantes a se mudarem para Istambul e estabelecerem negócios lá. Os governantes posteriores continuaram esta política.


Receita do sucesso

Além do fato de o poder máximo ter sido transferido para apenas uma pessoa, evitando rivalidades, Bouquet explica que o império teve sucesso por outros motivos, sendo um dos principais o seu caráter de Estado fiscal-militar.



O chefe turco Osman (1258-1324), considerado o fundador do Império Otomano. Getty imagens 


“Era um Estado em que a extração de recursos da riqueza fiscal estava ligada à conquista militar, que tinha o objetivo de adquirir mais riqueza e fazer entrar mais impostos de forma centralizada”, disse o especialista à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.


Outro elemento propulsor do império, segundo o historiador, foi o seu poderio militar.


Os ataques do exército otomano foram rápidos e contaram com forças especializadas, como o famoso corpo de elite dos janízaros, ou janíçaros, que protegiam o sultão, e os sipaios, uma temida tropa de cavalaria de elite que em tempos de paz era responsável pela cobrança de impostos.


Também desempenharam papel importante a burocracia altamente centralizada do império, que lhe permitiu organizar a distribuição das suas riquezas, o fato do império ser inspirado e unido pelo islamismo, e de toda a sociedade ter o mesmo governante como referência.


“Era em tese uma sociedade que permitia outras religiões e, em teoria, não havia conversão forçada (ao Islã). Mas na verdade houve. Houve uma política de islamização em certos territórios”, diz Bouquet.


Os otomanos também se destacaram por seu pragmatismo: pegaram as melhores ideias de outras culturas e tornaram-as suas também.


Solimão, o Magnífico

Um dos sultões mais conhecidos do império foi Solimão, o Magnífico, que reinou entre 1520 e 1566 e fez com que o seu Estado chegasse aos Balcãs e à Hungria, chegando às portas da cidade romana de Viena.



Solimão, o Magnífico. GETTY IMAGENS 

Embora no Ocidente ele seja lembrado como “o Magnífico” e no Oriente como “o Legislador”, Suleiman tinha outros títulos tão exagerados quanto surpreendentes.


Estes incluem "o deputado de Allah na Terra", "Senhor dos Senhores deste mundo", "Dono dos pescoços dos homens", "Refúgio de todas as pessoas em todo o mundo", entre muitos outros que denotam a sua importância.


Um dos seus apelidos mais polêmicos era "Imperador do Oriente e do Ocidente", algo visto por historiadores como um desafio direto à autoridade de Roma que, naquela época, havia sido superada pela autoridade otomana.


Embora o império atingisse sua extensão territorial máxima mais tarde, o período de Solimão, o Magnífico, é considerado no Ocidente como uma era de ouro para os otomanos, quando aconteceram muitas campanhas militares bem-sucedidas.


O império que queria ser universal

O nome “Imperador do Oriente e do Ocidente” também deixa claro que o Império Otomano se via e se considerava como único, sem nenhum igual ou semelhante.


“Aos olhos dos sultões otomanos, não havia outro imperador além do sultão otomano”, explica o historiador Olivier Bouquet.



Sultão Mahmud II saindo da Mesquita Bayezid, Constantinopla, em 1837. HERITAGE IMAGES

Segundo ele, a ideia de um império universal vem da herança bizantina e do Islã.


“Eles queriam conquistar todos os territórios onde viviam homens e mulheres”, diz o professor. "Todos os países localizados fora dos 'territórios do Islã' (Dar al-Islam) tinham uma vocação para ser conquistados."


Isso explica a longa duração do Império Otomano: seu exército não tinha limites na conquista de territórios, que avançou durante séculos.


“E o império começou a enfraquecer no momento em que as conquistas ficaram mais difíceis ou param”, acrescenta Bouquet.


O começo do fim

Um dos primeiros episódios a enfraquecer a superpotência em que se transformara o Estado Otomano foi a sua derrota na Batalha de Lepanto, em 1571.


O império enfrentara a Liga Santa, uma coligação militar composta por Estados Católicos e liderada pela monarquia espanhola e um grupo de territórios onde hoje está a Itália.


Esta é descrita como uma das batalhas mais sangrentas que a humanidade viu desde a antiguidade e pôs fim à expansão militar otomana no Mediterrâneo.

A derrota na Batalha de Lepanto em 1571 foi um golpe devastador para o Império Otomano. Getty imagens 

A partir daí terminava a sorte do império, dando espaço a um longo e progressivo declínio.


Vários erros de cálculo somados à instabilidade política e econômica de Istambul no início do século XX acabaram desmoronando um império cujo brilho já estava manchado.


O primeiro foi a Primeira Guerra dos Balcãs (1912-1913), na qual enfrentou a Liga Balcânica (Bulgária, Grécia, Montenegro e Sérvia), que, apoiada pela Rússia, tentava expulsar os otomanos de suas terras.


Militarmente inferior, o Império Otomano perdeu a guerra e com ela todos os seus territórios na Europa, com exceção de Constantinopla e arredores.


Historiadores recordam esta derrota como um ponto de virada e um episódio "humilhante" para os otomanos.


O golpe final

Os territórios otomanos restantes atravessavam um mau momento econômico, devido ao desenvolvimento de outras rotas comerciais, à crescente rivalidade comercial com a América e a Ásia, e ao aumento do desemprego.


Eles também enfrentavam as ambições expansionistas de potências europeias como a Grã-Bretanha e a França.


Além disso, as tensões entre diferentes grupos religiosos e étnicos aumentaram. Armênios, curdos e gregos, entre outros povos, sentiam-se cada vez mais oprimidos pelos turcos.


Com todos esses problemas, Istambul embarcou em uma nova guerra contra uma poderosa aliança liderada pela França, o Império Britânico, os Estados Unidos e a Rússia.


A vitória dos Aliados no Oriente Médio durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi um dos gatilhos para a desintegração do Império Otomano, que já estava com os dias contados.


Depois disso, foram criados o mandato francês na Síria e os mandatos britânicos no Iraque e na Palestina, todos sob a supervisão da Liga das Nações (órgão que precedeu a ONU).


Os otomanos não sabiam que em 1917, no meio da guerra, a França e a Grã-Bretanha já tinham concordado secretamente em dividir seus territórios pelo tratado Sykes-Picot.


Nesse mesmo ano, também foi assinada a Declaração Balfour, documento no qual o governo britânico prometia ao povo judeu um “lar” na região da Palestina, que também fazia parte do império.


Nasce um país: Turquia

Oficialmente, o império deixou de existir em 1º de novembro de 1922, quando o cargo de sultão foi abolido.


Um ano depois nasceu a República da Turquia.


Depois de liderar uma revolução republicana, Mustafa Kemal Atatürk, considerado "o pai da Turquia moderna", tornou-se seu primeiro presidente.


O último sultão do Império Otomano, Mehmed VI, temia ser morto pelos revolucionários e teve de ser retirado de Istambul por agentes britânicos.


Ele acabou exilado na Itália de Benito Mussolini, no balneário de San Remo, mesmo local onde havia sido acertada a divisão de seu império.


Lá ele morreu quatro anos depois, tão pobre que as autoridades italianas confiscaram seu caixão até que as dívidas com comerciantes locais fossem pagas.



Mustafa Kemal Atatürk governou a Turquia desde a sua criação, por 15 anos
. Getty imagens 

A república que nascia deixou para trás suas aspirações imperiais e se baseou no Kemalismo, uma ideologia implementada por Atatürk que tinha como valores o republicanismo, o populismo, o nacionalismo, o secularismo, o estatismo e o reformismo.


Muitos historiadores afirmam que o secularismo da Turquia moderna é um “grande” legado do Império Otomano.


Neo-otomanismo

Por outro lado, o califado Otomano continuou brevemente como instituição na Turquia, embora com autoridade bastante reduzida, até que também foi abolido em 3 de março de 1924.


Atualmente, a visão de que a derrota dos otomanos na Primeira Guerra Mundial pôs fim ao seu império é contestada por alguns, que afirmam que a sua queda é culpa do Ocidente.


“A ideia da responsabilidade ocidental (na queda do império) foi assumida durante vários anos pelo regime de Ancara e pelo atual presidente da República Turca (Recep Tayyip Erdogan)”, afirma o historiador Olivier Bouquet.



Recep Tayyip Erdogan. GETTY IMAGENS 

Nos últimos anos, o sentimento de nostalgia que alguns na Turquia sentem pela era otomana alimentou o ressurgimento do chamado neo-otomanismo.


Trata-se de uma ideologia política islâmica e imperialista que, no seu sentido mais literal, defende a honra do passado otomano da Turquia e o aumento da influência turca nas regiões que estiveram sob domínio otomano.


Durante muitas décadas, os líderes da Turquia moderna se esforçaram para se distanciar do legado imperial e do Islã com a intenção de projetar uma face mais “ocidental” e “secular”.


Mas desde sua ascensão ao poder, Erdogan não esconde sua nostalgia pelo passado otomano do seu país e sua herança islâmica.


Prova disso foi a controversa conversão em 2020 da Hagia Sophia – que Atatürk transformou em um dos museus mais emblemáticos de Istambul – em uma mesquita.


Da mesma forma, Erdogan demonstrou repetidamente sua admiração por Selim I, um sultão que liderou uma das maiores expansões do Império Otomano.


Depois de vencer um referendo constitucional em 2017, que expandiu enormemente seus poderes presidenciais, Erdogan fez sua primeira aparição pública no túmulo do antigo sultão otomano.


E, mais recentemente, decidiu dar seu nome a uma das pontes construídas sobre o famoso estreito de Istambul, no Bósforo.


“O Império Otomano desapareceu, mas há um neo-otomanismo que se desenvolveu (…) Há muito mais referências ao Império Otomano hoje do que havia no final do século XX”, conclui Bouquet.


》Publicado originalmente por BBC NEWS MUNDO em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2l3exw1wj1o.amp




Os muçulmanos que salvaram milhares de judeus do Holocausto por um código de honra


MUSEU MEMORIAL DO HOLOCAUSTO DOS ESTADOS UNIDOS
Legenda da foto. Família de judeus refugiados de Skopje, Macedônia, junto com uma família albanesa que os acolheu em 1943 em Tirana, Albânia


A Albânia foi um dos poucos países europeus que no fim da 2ª Guerra Mundial tinha uma população judaica maior do que no início do conflito.


Famílias albanesas, em sua maioria muçulmanas, acolheram em suas casas e protegeram milhares de refugiados de países como Alemanha e Áustria que fugiam da perseguição durante o Holocausto, como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante o conflito, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado pelo partido nazista de Adolf Hitler.


Já em 1938, um ano antes do início da guerra, o rei Zog 1º da Albânia havia oferecido asilo político a mais de 300 judeus, concedendo-lhes até a cidadania albanesa.


Mas essa proteção não durou muito. Em 1939, a Itália invadiu a Albânia, declarou-a seu protetorado, e o rei Zog 1º foi forçado ao exílio.


Com o país sob o comando do ditador italiano Benito Mussolini, ficou mais difícil a entrada de judeus no país.


No entanto, em 1945, a Albânia chegou ao fim da guerra com mais de 3 mil refugiados judeus em seu território.


Esse elevado número é explicado pela tradicional solidariedade dos seus cidadãos e por um código de honra denominado besa.


"Os albaneses acolheram os judeus em suas famílias, alimentaram-nos, cuidaram deles, esconderam-nos. E cada vez que as coisas ficavam mais perigosas, eles encontravam maneiras de transferi-los para outros lugares", diz Shirley Cloyes DioGuardi, da Liga Cívica Albanesa-Americana nos Estados Unidos, um grupo que representa os interesses da comunidade albanesa naquele país. Muitos dos que ajudaram os refugiados eram pessoas que não estavam envolvidas na política ou em movimentos sociais, mas simplesmente tinham um espírito humanitário.


GETTY IMAGES. Mesquitas na pequena e montanhosa Albânia

É o caso de Arslan Rezniqi, um comerciante de alimentos que arriscou a vida e a de sua família para salvar centenas de refugiados judeus, segundo conta a premiada atriz britânica Helena Bonham Carter, no podcast History's Secret Heroes, da BBC. Carter, famosa por filmes como O Discurso do Rei e Harry Potter, tem ascendência judaica por parte de mãe.


A família de Arslan era muçulmana, religião majoritária na Albânia, onde apenas 17% da população é cristã, mas ele se considerava antes de tudo parte da comunidade albanesa, orgulhoso de sua natureza humanitária, que ainda hoje segue o código besa.

Besa, código de honra da Albânia


O código de honra besa é uma regra moral estrita baseada na compaixão e tolerância para com os outros. Besa significa "promessa de honra" e, embora seja preciso voltar às tradições orais do século XV para entender suas origens, ele ainda persiste entre os albaneses.


"O Besa alia a honra pessoal ao respeito e à igualdade com os demais. Entre seus principais valores está a proteção incondicional do hóspede, que pode até mesmo colocar em risco a própria vida", diz DioGuardi.


O código besa é passado de geração em geração.


A tradição foi transmitida por séculos como parte do Kanun, um conjunto de leis não escritas e regidas por costumes, criadas no século 15 para governar as tribos do norte da Albânia, diz Orgest Beqiri à BBC.


Embora o Kanun seja considerado a fonte original do besa, muitos argumentam que a tradição é ainda mais antiga e que o Kanun apenas coloca palavras em tradições tribais de longa data. 


MUSEU MEMORIAL DO HOLOCAUSTO DOS ESTADOS UNIDOS. Famílias de refugiados judeus da Iugoslávia vieram para a Albânia escapando do Holocausto

A maioria dos judeus que chegou à Albânia se escondeu em pequenas cidades e nas montanhas. Portanto, era altamente improvável que as autoridades os descobrissem.


Os refugiados estavam escondidos em bunkers subterrâneos e cavernas nas montanhas. Mas às vezes, nem precisavam se esconder.


Quando os nazistas ocuparam a Albânia, eles exigiram que as autoridades albanesas fornecessem listas de judeus a serem deportados. Mas as autoridades locais recusaram.


Em seu trabalho com a Liga Cívica Albanesa-Americana, Shirley DioGuardi se deparou com inúmeras histórias de judeus escondidos em casas abandonadas.


Portanto, a ajuda prestada aos judeus era considerada uma questão de honra nacional.


Tal é o reconhecimento do caráter humanitário dos albaneses, que o memorial Yad Vashem de Israel às vítimas do Holocausto presta homenagem a cerca de 25 mil "justos" que arriscaram suas vidas para proteger a comunidade judaica.


Embora a 2ª Guerra Mundial tenha sido uma das provas mais duras que esse código social teve de enfrentar, a perseguição do regime nazista não foi o primeiro nem o último desafio.

Uma regra, não uma exceção


A história se repete mesmo que os tempos e suas vítimas mudem.


Vários anos depois, na década de 1990, mais de 500 mil refugiados, a maioria albaneses étnicos, deixaram o Kosovo rumo à Albânia fugindo das forças militares sérvias.


"As famílias albanesas iam para os campos de refugiados kosovares, encontravam uma família e depois as levavam para casa. Não eram parentes ou amigos, eram estranhos, mas os albaneses os recebiam, alimentavam, vestiam, tratavam como se fossem parte de sua família", diz à BBC Nevila Muka, neta de uma albanesa que resgatou uma família refugiada.


Quando perguntam a Nevila por que ela acha que sua avó fez isso, ela dá de ombros e responde: " É o jeito albanês. É o besa."



Muka explica à BBC que o besa é um código para os albaneses: "Se alguém vier até você para pedir ajuda, você lhe dá um lugar para ficar."


Embora alguns dos aspectos mais rígidos do besa tenham diminuído com o tempo, o senso geral de dever e hospitalidade perdurou na sociedade albanesa.


A Albânia está novamente oferecendo asilo, desta vez para aqueles que saem do Oriente Médio. Após a retirada repentina dos EUA do Afeganistão e a tomada do país pelos talibãs, dezenas de afegãos chegaram à Albânia.


A ministra das Relações Exteriores do país, Olta Xhacka, disse nas redes sociais que a Albânia "receberá orgulhosamente 4 mil refugiados afegãos graças à sua boa vontade. Nunca será um centro de políticas anti-imigração de países maiores e mais ricos".


É assim que a Albânia, um pequeno e pobre país entre as grandes nações europeias, demonstrou mais de uma vez ao longo de sua história seu compromisso com a hospitalidade para com as pessoas que são forçadas a deixar seus países vítimas de perseguições.


  • Esta reportagem contém informações apresentadas em History's Secret Heroes, o podcast da BBC Studios Podcast para BBC Radio 4 e BBC Sounds, conduzido por Helena Bonham Carter e produzido por Amie Liebowitz.

Possível valsa de Dom Pedro I é anunciada por portal

Descoberta pode ser fato histórico para a música brasileira


Descoberta pode ser fato histórico para a música brasileira. © Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Agência Brasil 🇧🇷

A peça intitulada Valse de 1819, consta do volume manuscrito 7703 da Biblioteca Nacional da França, em Paris. Nele, encontram-se peças para piano de autoria do compositor austríaco Sigismund Neukomm, escritas no Rio de Janeiro, e por ele autografadas. Neukomm foi o único músico a integrar a Missão Artística Francesa no Brasil, onde escreveu 70 obras.


Mestre de música de D. Pedro, entre 1816 e 1821, deve-se a Neukomm a menção, em seu catálogo, de que elaborou arranjos para orquestra a partir de “seis valsas de D. Pedro”.


Até hoje, estas composições não foram localizadas, nem os arranjos de Neukomm. Porém, dentre as 25 peças do volume manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional da França, a Valse é a única que não traz a assinatura de Neukomm e que não foi mencionada em seu catálogo, o que aponta para a possibilidade de tratar-se de uma das peças de autoria de Dom Pedro I, ainda não encontradas, segundo a musicista Rosana Lanzelotte.


Avaliação

Além disso, os elementos compositivos de Valse são claramente distintos daqueles característicos do músico austríaco e, por sua vez, podem ser avaliados como próximos de outras peças do então príncipe.


“A única forma de comprovar seria se encontrássemos o manuscrito de dom Pedro, que já se procurou. Estive em contato com vários musicólogos que estão de acordo que estilisticamente essa valsa é mais próxima da linguagem composicional de dom Pedro do que do Neukomm”, disse Rosana.


Se confirmada, a descoberta pode representar um acontecimento histórico para a música brasileira, na avaliação de Rosana, que está finalizando um livro sobre dom Pedro compositor que deve ser lançado no segundo semestre.


Dom Pedro assinou o Hino da Independência, o Hino Constitucional que foi o hino português entre 1834 e 1910, e obras sacras preservadas no arquivo da Catedral Metropolitana do Rio, mas não uma valsa.


Musica Brasilis

Criado em 2009, o portal Musica Brasilis tem como missão o resgate e difusão de repertórios brasileiros de todos os tempos, em grande parte inacessíveis por falta de edições. O acervo - constituído por mais de 2.500 partituras de compositores brasileiros - é mensalmente consultado por 45 mil usuários de todo o mundo.

História dos povos do país

Na história e geografia, três datas se destacam na semana: dia 24 de março é o Dia da União dos Povos Latino-Americanos. O Momento Três, da Rádio Nacional, fez sua reverência ao povo latino - formado por diferentes estilos, identidades, culturas e até idiomas, mas que se une também pela música:



Pessoas de origem árabe no Brasil também têm um dia para chamar de seu: dia 25 de março é o Dia Nacional da Comunidade Árabe. Entenda, nesta entrevista que foi ao ar pelo programa VerTV, da TV Brasil, como se deu a imigração árabe para o país:



Também em 25 de março a ONU estabeleceu o Dia Internacional em Lembrança pelas Vítimas da Escravidão e do Tráfego Transatlântico de Escravos nos Navios Negreiros. 

O Na Trilha da História, da Rádio Nacional, tratou sobre o tráfico de africanos escravizados e a rotina de trabalho forçado imposta a esses homens e mulheres.



O Caminhos da Reportagem, da TV Brasil, reforça que o Brasil foi o local na América que mais recebeu negros cativos: 4,86 milhões de africanos escravizados entre os séculos 16 e 19, segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, que contém informações de mais de 35 mil viagens de navios negreiros. O episódio mostra ainda como a escravidão continua ecoando na sociedade brasileira.



Os adolescentes que desafiaram Stalin e sobreviveram para contar a história

Milhões foram perseguidos durante os tempos em que Stalin liderou a União Soviética. 

Quando o líder soviético Joseph Stalin morreu em 5 de março de 1953, parecia que toda a União Soviética havia mergulhado em luto. Mas por trás dessa imagem de pesar, havia sentimentos variados em relação ao líder sob o qual milhões de pessoas morreram por causa de fome ou perseguição. E outros milhões caíram na pobreza.


Houve um episódio em que a autoridade de Stalin foi contestada por três adolescentes.


Durante as quase três décadas que esteve no poder, Stalin procurou projetar uma autoridade inquestionável, reprimindo com brutalidade as vozes dissidentes.


No entanto, houve protestos na União Soviética. Eles não eram frequentes ou em grande escala, mas indicavam que muitos discordavam do regime totalitário.

Joseph Stalin não era tão incontestável na União Soviética quanto parecia na época. CORBIS VIA GETTY IMAGES


Um desses episódios de contestação ocorreu em Chelyabinsk, uma cidade industrial nos Urais, uma região montanhosa que separa as partes europeia e asiática da Rússia. A cidade abrigava uma fábrica de construção de tratores.


Um dia, na primavera de 1946, três adolescentes começaram a espalhar panfletos no centro da cidade. Os residentes locais na fila para comprar comida os observavam com cansaço.


Os meninos não tinham cola, então usaram pão embebido em água para colar folhas de papel, arrancadas de seus cadernos escolares, em paredes e postes.


"Pessoas famintas, insurjam-se e lutem!", dizia um dos panfletos rabiscado a mão por um aluno.


Uma mulher na fila leu o panfleto. "Uma pessoa inteligente escreveu isso", comentou ela.


Os jovens eram Alexander (conhecido como Shura) Polyakov, Mikhail (Misha) Ulman e Yevgeny (Genya) Gershovich. Eles tinham 13 anos na época. Shura Polyakov era o líder do grupo.


Sua família era originária de Kharkiv, na Ucrânia, e ele foi levado para os Urais com sua mãe, avó, irmã e tia. Sua família de cinco pessoas dividia um quarto. A cidade tinha dificuldades para acomodar refugiados de guerra.


O pai de Shura havia sido morto na guerra. Sua mãe agora sustentava a família, trabalhando como advogada.

Alexander - ou Shura - Polyakov, quando adulto.  ARQUIVO DA FAMÍLIA POLYAKOV


Genya Gershovich também estava crescendo sem a presença do pai, mas por um motivo diferente. Ele nasceu em Leningrado e, em 1934, seu pai foi preso, falsamente acusado de pertencer a uma rede clandestina que planejava derrubar o governo.


Ele morreu sem deixar vestígios.


Para manter seus dois filhos seguros, a mãe de Genya mudou-se para Chelyabinsk. Apesar de seu marido ser considerado "um inimigo do povo", ela conseguiu um emprego como professora do ensino médio.

Yevgeny, também conhecido como Genya, quando adulto. ARQUIVO DA FAMÍLIA GERSHOVICH


O pai de Genya havia sido executado antes da guerra, mas a família ficou sabendo de sua morte muito depois.


Mikhail (ou Misha) Ulman — assim como Genya — também era de Leningrado. Mas sua família permanecia unida. Seus pais se mudaram para Chelyabinsk no início da guerra para trabalhar na fábrica de tratores, que na época fabricava tanques de guerra em vez de equipamentos agrícolas.


Em Chelyabinsk, a família de Misha vivia em um pequeno quarto e era obrigada a dividir o espaço com um estranho. A sala era dividida por um varal com um lençol pendurado.

Mikhail (Misha) Ulman, quando adulto. ARQUIVO DA FAMÍLIA ULMAN


Os três meninos frequentaram a mesma escola. Ulman e Gershovich chegaram a ser colegas de mesa na sala de aula.


Mesmo com apenas 13 anos, os meninos já liam as obras de Marx, Lenin e Stalin como parte do currículo escolar. Eles aprenderam com esses livros que aceitar injustiças era errado.


Eles também estudaram cuidadosamente a letra da Internacional, um hino do movimento operário escrito na década de 1870 por um revolucionário francês, que era entoado por todos que lutavam contra a injustiça social.


A música serviu como o hino nacional soviético entre 1922 e 1944. Os meninos não podiam acreditar que a letra — que convocava as massas a se levantarem contra a desigualdade social — não fosse proibida na União Soviética.


Os meninos e suas famílias enfrentaram graves dificuldades econômicas, vivendo à beira da fome com as rações alimentares do pós-guerra.


Havia uma piada popular na União Soviética sobre a época em que os líderes dos EUA, Reino Unido e União Soviética — reunidos na Conferência de Yalta em fevereiro de 1945 perto do fim da guerra — discutiam qual método deveria ser usado para executar Hitler.


Segundo a piada, Winston Churchill sugere o enforcamento. Franklin Roosevelt sugere a cadeira elétrica. E Stalin diz que a maneira mais eficaz seria alimentar Hitler com rações de comida soviética. Os outros dois concordam que esse seria o castigo mais cruel.


Mas nem todos na União Soviética eram obrigados a sobreviver com rações escassas. Os três meninos tinham um colega de classe cujo pai era diretor da fábrica local.


O estilo de vida do colega era completamente diferente do deles: ele era levado para a escola por um motorista, recebia comida muito mais saborosa em sua lancheira e, em sua festa de aniversário, os meninos puderam provar água com gás e assistir a filmes de Charlie Chaplin, projetados em uma parede.


Desnecessário dizer que a família do diretor não morava em um quarto compartilhado com um estranho, mas desfrutava de acomodações espaçosas e confortáveis. Tudo isso parecia algo saído de um conto de fadas.


As condições de vida dos trabalhadores da fábrica de Chelyabinsk eram difíceis mesmo antes da guerra — muitos viviam em porões e abrigos. Com o início da guerra, Chelyabinsk enfrentou uma invasão de refugiados das regiões ocidentais da Rússia, o que piorou as condições de vida de todos.


Em dezembro de 1943, a direção da fábrica descobriu que até 300 trabalhadores dormiam no chão de fábrica, pois não tinham para onde ir. Alguns disseram que não tinham roupas de inverno; outros, nenhum calçado. Eles não podiam deixar a fábrica.


Embora as pessoas estivessem preparadas para aguentar as adversidades da guerra, assim que o conflito terminou, a paciência se esgotou. Embora felizes com a derrota da Alemanha nazista, muitos em Chelyabinsk estavam cansados da constante humilhação de viver na miséria.

Logo após a guerra, um parque foi aberto perto da fábrica de tratores de Chelyabinsk, mas as condições de vida ainda eram duras. ARQUIVO DE CHELYABINSK


Os três meninos ouviam os adultos reclamarem de acomodações úmidas no porão, vazamentos nos telhados, sopa feita de urtigas, falta de sabão por quatro anos e muitos outros problemas. Eles viviam em pobreza extrema e sentiam que tinham muito pouco a perder.


Eles estavam cada vez mais irritados com a injustiça que observavam diariamente em contraste com a propaganda soviética.

Conferência regional do Partido Comunista de Chelyabinsk no final da década de 1940. ARQUIVO DE CHELYABINSK


Um dia, em abril de 1946, os meninos arrancaram uma página de um caderno escolar e escreveram: "Camaradas, trabalhadores, olhem ao seu redor! O governo vinha atribuindo seus problemas à guerra. Mas a guerra acabou. Suas condições melhoraram? Não! O que o governo deu a vocês? Nada! Seus filhos estão com fome, mas vocês estão tendo que ouvir histórias sobre uma infância feliz. Camaradas, olhem ao redor e percebam o que realmente está acontecendo!"


No começo, os meninos distribuíam e colavam seus panfletos apenas à noite, mas em poucos dias eles se tornaram mais ousados e pararam de se preocupar com as consequências. Eles até conseguiram alguns de seus colegas de classe para ajudar.


Os temidos agentes da NKVD — que posteriormente se tornaria a KGB e hoje se chama FSB — rapidamente souberam da situação e logo descobriram que os panfletos antigovernamentais eram feitos por crianças em idade escolar.


As escolas fizeram checagens na caligrafia de cada aluno para identificar os culpados. As crianças em Chelyabinsk foram obrigadas a escrever palavras como "camarada" e "infância feliz".

O prédio onde os Serviços de Segurança de Chelyabinsk estavam sediados na década de 1940. V. S. KOLPAKOV


Yevgeny Gershovich foi o primeiro a ser preso. Depois foi Alexander Polyakov, E no final de maio de 1946, Mikhail Ulman. Suas famílias ficaram consternadas e apavoradas.


Os meninos enfrentaram questionamentos implacáveis por parte dos serviços de segurança, que tentaram condená-los por simpatia ao nazismo. Os adolescentes ficaram indignados: como marxistas devotos também podem ser nazistas?


Gershovich e Polyakov foram julgados em agosto de 1946 e considerados culpados de espalhar propaganda antissoviética. Eles foram condenados a três anos de prisão juvenil.


Quando já eram adultos, eles se lembraram daquela época horrenda, cheia de espancamentos e perseguições por parte de outros jovens internos que estavam presos por crimes.


Ulman teve sorte — como não tinha completado 14 anos na época da prisão, escapou completamente da punição. Seus pais voltaram para Leningrado rapidamente para ficar longe dos Serviços de Segurança de Chelyabinsk.


Gershovich e Polyakov também escaparam com relativa facilidade, pois foram soltos no final de 1946, com suspensão de suas penas.


Talvez a pouca idade dos meninos os tenha ajudado a escapar de consequências muito mais duras.


Mas também é possível que os serviços de segurança e os juízes tenham ficado surpresos com a seriedade dos jovens rebeldes que, apesar de viverem em um dos regimes mais totalitários da história, acreditaram que poderiam protestar contra a injustiça social e obrigar o governo a melhorar a vida dos trabalhadores.


Já adultos, tanto Ulman quanto Polyakov emigraram para Israel, onde este ainda mora com sua esposa. Foi onde a BBC conseguiu falar com ele.

Mikhail Ulman, já idoso. ARQUIVO DA FAMÍLIA ULMAN


Depois de adulto, Ulman mudou-se para a Austrália, onde morreu em 2021.

Yevgeny Gershovich. ARQUIVO DA FAMÍLIA GERSHOVICH


Yevgeny Gershovich foi preso novamente no final dos anos 1940, logo depois de ser expulso da universidade, acusado de ter tendências antissoviéticas.


Ele foi condenado a dez anos de prisão, mas foi libertado logo após a morte de Stalin, junto com milhões de outras vítimas da repressão. Ele morreu na década de 2010.


- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz7rk5136j4o

O relatório que apontava há 56 anos maus-tratos a indígenas e descaso de militares

 

Relatório mostrou o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960.  ARMAZÉM DA MEMÓRIA


Atenção: o texto a seguir contém relatos que podem ser perturbadores para alguns leitores


A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar vestígios. É o que destacava em 1967 o procurador Jader de Figueiredo Correia em um relatório que descrevia violências praticadas contra povos indígenas no Brasil por militares, integrantes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), funcionários públicos, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, madeireiros e empresários.


"A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. 


A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível", revelava o relatório escrito há 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.


Ele mostrava o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. "O Serviço de Proteção ao Índio degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio", apontou o relatório, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.


Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, violência e falta de assistências a comunidades indígenas no Brasil, como os Yanomami, já estava documentado naquele relatório composto por 26 volumes e 5.492 páginas.


A investigação foi resultante de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas.


Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Houve a recomendação de prisões, demissões ou a suspensão do trabalho, além de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judiciário.


Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Fundação Nacional do Índio, que passou depois a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Ninguém foi preso.


'Estado é autor'

A Comissão Nacional da Verdade investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorrida no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, através de seus servidores, ou de forma indireta, por omissão diante dos ataques contra essas populações originárias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a conivência de políticos locais, estaduais e federais.


"Há repetição permanente desse problema. São 56 anos desde a denúncia do Relatório Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional indígena às suas terras e ao usufruto de seus territórios segue inalterado. 


Os povos são atacados em suas comunidades e aldeias, sem solução", reclama Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, responsável pelo resgate do Relatório Figueiredo nos arquivos do governo federal.


O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situação de "o maior escândalo administrativo do Brasil".


Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do indígena, assassinatos individuais e coletivos, prostituição de indígenas, sevícias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, dilapidação do patrimônio indígena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, exploração de minérios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doação criminosa de terras, venda de veículos.


Relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcançou cifras incalculáveis. Não sendo "possível levantar com exatidão os valores subtraídos aos índios (sic) para exigir ressarcimento".


Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adulteração de documentos oficiais, fraudaram processos de comprovação de contas, desviaram verbas orçamentárias, aplicaram irregularmente dinheiro público. Eles acarretaram em omissões dolosas das autoridades e dos próprios servidores, admissões fraudulentas de funcionários e incúria administrativa.


Crueldade

Com relação à violência, o documento registra o genocídio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lançamento de explosivos de avião sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio.


"Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avião, e a estricnina (veneno) adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de 'pi-ri-pi-pi' (metralhadora) e racham vivos, a facão, do púbis para a cabeça o sobrevivente", relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia.


O caso do extermínio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. 


Depoimento de Ramis Bucair, servidor público, descreve a ação de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a ação, localizaram com vida uma indígena e seu filho de seis anos. 


O menino acabou morto com um tiro na cabeça. A mulher foi pendurada pelos pés, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de facão.


A comissão chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das mãos do próprio Ramos Bucair uma fita de áudio com a gravação da confissão do crime, com a voz de Ataíde Pereira dos Santos.


Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

Também há registro sobre a extinção de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó-Hãhãhãe, utilizando o envenenamento químico de doença. 


"A serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas a denúncia de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo".


"É preciso desarmar os mecanismos de repetição da história que existem. A não-repetição de violações de direitos humanos pressupõe a criação de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gestão e ação do Estado brasileiro. 


Estes procedimentos se constituem em prática lesiva ao direito indígena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário que, quando não são protagonistas, dão sustentação fundamental à repetição de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme denúncias de genocídio e crimes de lesa-humanidade em análise no Tribunal Penal Internacional", afirma Marcelo Zelic.


Relatório da Comissão Nacional da Verdade

Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.


No relatório da CNV são apontadas as mortes de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos.


No capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas consta que o maior número de mortos está entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) - 2.650 mortos; Tapayuna (MT) - 1.180; Yanomami (AM/RR) - 354; Xetá (PR) - 192; Panará (MT) - 176; Parakanã (PA) - 118; Xavante Marãiwatsédé (MT) - 85; Araweté (PA) - 72 e Arara (PA) - 14 mortos.


Atualmente, a população brasileira é composta por aproximadamente 900 mil indígenas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.


Responsável pela saúde indígena na década de 1970, a Funai foi omissa e levou à morte muitos indivíduos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relatório. Eram casos de sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por infecções sexualmente transmissíveis.


O mesmo relatório da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o município de Caracaraí e o limite entre Roraima e Amazonas, também provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 indígenas abrigados em malocas no rio Catrimani na década de 70.


'Ciclo de violência contra os povos indígenas'

"O Relatório Figueiredo elencava entre 'os crimes contra a pessoa e a propriedade do índio' práticas como, entre outras, 'sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena'. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas práticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em consideração o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constituição, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanitária", diz Edilene Coffaci, antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).


E Marcelo Zelic diz: "Os governos agem sob pressão. O Estado age para tirar o problema da frente, mas é uma situação cíclica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema é grave, vai para a imprensa, há uma ação da sociedade. Daqui a pouco tudo some do noticiário e as coisas voltam a ser como eram antes".


Esse ciclo de violência contra os povos indígenas não termina porque corresponde a uma cultura de índole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.


Attié afirma que os indígenas estão sendo expropriados de seus territórios e violentados desde a chegada europeia, no século 16. "Penso que essa expropriação sempre se deu de modo ilícito - foram construídas teorias jurídicas especificamente para justificar esse processo, conferindo àqueles que se apropriaram das terras indígenas títulos falsos, validados pela própria constituição do direito moderno, que subsiste até hoje".


Para superar esse ciclo, há necessidade de medidas que dizem respeito a políticas públicas, sobretudo as de reconhecimento dos territórios e de sua proteção efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.


O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

"Igualmente, há necessidade de impedir que os assassinatos contra líderes indígenas permaneçam. A criação de um Ministério para os Povos Indígenas significa alçar as políticas da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente", diz Attié.


"Mas isso não basta, pois há necessidade de enfrentar corajosamente a revisão do que significa propriedade e restabelecer a propriedade indígena - são os verdadeiros donos do território brasileiro - e empreender uma política bastante radical na reatribuição de terras, o que afetará os donos do poder e os donos de extensas áreas, detentores ilegítimos do que não lhes pertence de direito", afirma Attié, ao apontar que "talvez auxilie na compreensão dessa política a consciência de que defender indígenas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que são guardiães."


Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Também aponta que "nunca se investigou o Reformatório Krenak, que era um campo de concentração, quantas terras indígenas foram invadidas, quantas crianças indígenas foram levadas à força em aviões da FAB para outras regiões do país, quantos Guaranis foram mortos na construção da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos indígenas".


Para garantir o direito e a vida dos povos indígenas, reafirma o professor do Mackenzie, é preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constituição brasileira.


"A terra indígena é ancestral, essencial para a existência dessas culturas. Os povos indígenas não detêm a terra, eles são a própria terra. Também é necessário dar maior protagonismo a esses povos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a presidência da nova Funai com uma indígena, como começou a ser feito agora", diz Bastos.


- Este texto foi publicado em  https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64384247

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