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Por que governo Bolsonaro é investigado por suspeita de genocídio contra os yanomami

PF vai investigar se houve omissão de agentes públicos no território yanomami durante governo Bolsonaro. CRÉDITO,BRENDAN SMIALOWSKI/AFP


  • André Biernath - @andre_biernath
  • Da BBC News Brasil em Londres


A Polícia Federal anunciou a abertura de um inquérito para investigar se houve crime de genocídio e omissão de socorro ao povo yanomami pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).


A investigação vai começar após um pedido feito por Flávio Dino, ministro da Justiça e da Segurança Pública, um dos integrantes da comitiva que visitou o território indígena no dia 21 de janeiro.


Outras duas denúncias estão em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Países Baixos. Nelas, a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genocídio durante a pandemia de covid-19 e na forma como ele lidou com a proteção dos indígenas nos últimos quatro anos.


Procurado pela reportagem, Bolsonaro não comentou o tema. Antes, Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a denúncia sobre a crise yanomami era "farsa da esquerda" e argumentou que seu governo levou atenção especializada para territórios indígenas.


Quais são os argumentos que fundamentam acusações tão graves? E o que mais disse Bolsonaro?


Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que há elementos suficientes para iniciar uma investigação, mas que é preciso encontrar evidências e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro. A seguir, entenda como, segundo eles, questões como estímulo ao garimpo, apuração sobre desvio de medicamentos e alertas ignorados pelo governo podem ser levados em consideração.



O que é genocídio?

O Tribunal Penal Internacional diz que o genocídio é caracterizado pela "intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição física total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo para outro".


A jurista Sylvia Steiner, única brasileira que foi juíza da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genocídio não é qualquer matança".


"Tem que existir a intenção de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da raça ou da religião dele", resume.


A especialista também aponta que há uma diferença entre genocídio e crimes contra a humanidade.


"Crimes contra a humanidade são aqueles praticados por parte de uma política de um Estado ou de uma organização que atacam a população civil. Eles incluem assassinato, violência sexual, deportação forçada, perseguição, extermínio, escravidão…", lista.


"Nesse caso, não existe um dolo especial, ou seja, a intenção clara de eliminar um grupo por questões como nacionalidade, etnia, raça, religião", complementa.

Localizado em Haia, o Tribunal Penal Internacional julga casos de genocídio e crimes contra a humanidade. GETTY IMAGES


O advogado Belisário dos Santos Junior, da Comissão Internacional de Juristas, lembra que o Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956.


"Ela foi aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação ao genocídio", diz.


A lei brasileira, portanto, também pune aqueles que estimulam "direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes" relacionados ao genocídio.


Mas o que pode pesar contra o governo Bolsonaro durante as investigações?


Estímulo ao garimpo

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região, que compreende a maior reserva indígena do país.


"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami].  Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.


O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. "Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.

Mineração e falta de políticas públicas representam ameaças aos povos indígenas, defende corte internacional. GETTY IMAGES

Durante os quatro anos de presidência, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a mineração em terras indígenas — o governo propôs inclusive um projeto de lei que viabilizaria a prática dentro da lei.


Em março de 2022, por exemplo, ele afirmou que "índio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, não só para agricultura, mas também para garimpo".


"A Amazônia é uma área riquíssima. Em Roraima, há uma tabela periódica debaixo da terra", acrescentou.


Santos Junior, que integra a Comissão Arns, entende que são vários os exemplos do estímulo de Bolsonaro ao garimpo.


"Os garimpeiros vão se apropriando das áreas, desmatam a floresta, invadem unidades básicas de saúde… Quem dá suporte a isso é justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem não dá as condições para que povos e etnias sobrevivam", defende.


Falta de remédios e alimentos

O Ministério Público Federal também fez operações para apurar desvios de medicamentos em território yanomami.


Segundo o órgão, só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022.


Os procuradores dizem que o desvio de vermífugos (que tratam de infestações de vermes) impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crianças que vivem nesta região.


Há ainda denúncias sobre a interrupção no fornecimento de alimentos.


Alisson Marugal, procurador da República em Roraima, afirmou que o Ministério da Saúde cortou o fornecimento de alimentação aos indígenas nos postos de saúde do Estado em 2020, sem dar explicações.


Todo o cenário de casos e mortes por desnutrição e malária fez com que o Ministério da Saúde decretasse uma emergência sanitária no território yanomami em 21 de janeiro.


Entre as ações emergenciais, o governo anunciou o envio de profissionais de saúde e a criação de hospitais de campanha para atender os pacientes.


Segundo o secretário de Saúde Indígena do ministério, Ricardo Weibe Tapeba, mais de mil indivíduos já foram resgatados em situação de extrema vulnerabilidade do local.

Em visita ao território yanomami, Lula diz que a situação é 'desumana'. RICARDO STUCKERT/PR

Alertas ignorados

Por fim, diversas instituições nacionais e internacionais chamaram a atenção para o que vinha acontecendo com os yanomami nos últimos meses e anos.


Em nota, a Apib disse que a invasão do garimpo ilegal na terra indígena yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes à justiça e aos órgãos do governo durante a gestão de Bolsonaro.


Existe também uma petição feita ao Supremo Tribunal Federal em maio do ano passado sobre esse assunto. Nela, a Apib e outras entidades pedem ações do governo para conter a invasão de garimpeiros nas terras onde vivem os yanomami e outros povos, como os munduruku.


No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku".


A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de "extrema gravidade e urgência".


Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável" desses povos.


A corte pediu ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualizações sobre o caso deveriam ser enviadas a cada três meses.


A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o país estava cumprindo as medidas.


Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, "até o dia de hoje, a corte está esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".


O que pode acontecer?

Para Santos Junior, "o ex-presidente, por causa de suas obsessões [com o garimpo], aparenta preencher os requisitos de quem assume os riscos". "Não é normal você deixar um povo sem assistência médica, sem as condições mínimas de sobrevivência", diz.


"Os indígenas foram sufocados de uma tal forma que as mortes e a redução do grupo se encaixam, a meu ver, na descrição do genocídio pelas ações ou inações do então Presidente da República", acrescenta o advogado.


A jurista Sylvia Steiner pondera que a abertura de um inquérito serve justamente para fazer investigações e reunir provas de possíveis crimes que foram eventualmente cometidos.


"Por ora, não há fatos provados. Existem alguns indícios em relação ao genocídio. E isso é sempre complicado, porque você precisa comprovar que havia uma intenção de eliminar os yanomami da face da Terra", explica.


Na visão da jurista, outra possibilidade é investigar possíveis crimes contra a humanidade — e não o genocídio.


"Pode ser observada a existência de um plano, de uma política de Estado contra os yanomami, mas em função da terra que eles ocupam e do interesse em se apropriar das riquezas que existem ali. Ou seja, nesse caso não falamos de uma perseguição dos yanomami por causa da etnia deles", pontua.


"Acontece que essa política de Estado leva à exterminação do grupo. Então, nós podemos estar diante de um crime contra a humanidade de extermínio ou perseguição", completa.


Steiner chama a atenção para o fato de a legislação brasileira não prever crimes contra a humanidade. Nesse caso, a eventual investigação e um julgamento posterior dependem da ação do Tribunal Penal Internacional.


A especialista aponta que esses julgamentos em Haia, de possíveis responsáveis pelos atos criminosos, podem render penas de até 30 anos ou prisão perpétua em casos extremos.


Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal. ANDRESSA ANHOLETE/CORRESPONDENTE GETTY IMAGES

Controvérsias e discordâncias

Steiner aponta que o conceito de genocídio e crimes contra a humanidade é alvo de muitas discussões entre os juristas.


"Uma parcela acredita que, decorrido tanto tempo desde que o conceito foi definido nos anos 1940, é preciso ter um entendimento um pouco mais alargado do que é um genocídio. Eles argumentam que o mundo mudou e a interpretação desse crime deveria ser mais flexível", diz


"Eu me situo entre aqueles que seguem a letra da lei. Então, para mim, tem que ficar demonstrado que realmente houve a intenção genocida, a intenção de destruir no todo ou em parte aquela comunidade, seja em razão da religião, da etnia, da raça ou na nacionalidade."


"Fora disso, pode ser que estejamos diante de um crime contra a humanidade, que é tão grave quanto", complementa.


De acordo com a especialista, o conceito de crimes contra a humanidade é relativamente novo — foi ratificado internacionalmente a partir do Estatuto de Roma em 2002 — e, por isso, ainda gera confusão.


"Esse conjunto de normas está acima das regras dos países e proíbe uma série de condutas que põe em risco a paz e a humanidade de comunidades inteiras", conta Steiner.


"Quando temos escândalos lamentáveis e catástrofes humanitárias, devemos usar esse momento para progredir do ponto de vista moral e ético. Que a atual situação desperte as pessoas e os países para as necessidades especiais das populações indígenas. Já não era sem tempo", conclui.


A BBC News Brasil tentou o contato com Bolsonaro por meio de assessores, ex-ministros, pessoas próximas, a comunicação do Partido Liberal e pelas próprias redes sociais para que ele pudesse dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.


Assim que a emergência de saúde veio à tona nos últimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.


Ele classificou a denúncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 ações de saúde entre 2020 e 2022 que levaram atenção especializada para dentro dos territórios indígenas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.


Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil indígenas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de proteção individual, totalizando 1,5 milhão de insumos enviados para essas operações.


- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64417930

Brasil ignorou decisão de corte internacional sobre os yanomamis desde julho

Mineração e falta de políticas públicas representam ameaças aos povos indígenas, defende corte internacional. GETTY IMAGES


No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku".


A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de "extrema gravidade e urgência".Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável" desses povos.


Além disso, a corte pedia ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, pedia novas atualizações sobre o caso a cada três meses.A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o país estava cumprindo as medidas.


Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, "até o dia de hoje, a corte está esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".


Como o caso começou

A resolução da corte está disponível online e descreve todo o processo desde o início.


Em 17 de maio de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é responsável por encaminhar pedidos à corte, fez uma solicitação de medidas provisórias a respeito dos povos yanomami, ye'kwana e munduruku.


Nesse contexto, medidas provisórias são decisões que a corte toma para "casos de extrema gravidade e urgência, quando é necessário evitar danos irreparáveis às pessoas".


"Em muitas ocasiões, essas medidas provisórias podem salvar a vida de uma pessoa ou um grupo contra o qual a garantia dos direitos humanos está sendo ameaçada", explica a própria corte no site oficial.


Início da resolução da corte sobre a proteção de três povos indígenas brasileiros. CORTE IDH/REPRODUÇÃO


Como justificativa para o pedido, a comissão apontou que esses três povos estão "numa situação de violência" por causa dos "conflitos entre os indígenas e pessoas não autorizadas que estão explorando ilegalmente minérios" — os garimpeiros.


Como evidências desses conflitos, os responsáveis pela denúncia citam as ameaças à vida e a perseguição de líderes indígenas que denunciaram o garimpo, os ataques com armas de fogo, as ameaças em grupos de WhatsApp, o deslocamento forçado de populações, a violência sexual contra meninas e mulheres e a exploração infantil.


A comissão ainda informou que houve "um avanço na atividade de garimpo na terra indígena yanomami em 2022". Segundo eles, a exploração de minérios veio acompanhada do tráfico de drogas e armas.


Especificamente sobre os efeitos desse cenário na saúde, o documento afirma que houve "um aumento nas enfermidades relacionadas à contaminação da água pelo mercúrio", a "propagação de doenças infecciosas", como a covid-19 e a malária, a "falta de medicamentos básicos" e o "agravamento da desnutrição infantil".


A resposta do Brasil

Após esse primeiro relatório de maio de 2022, o Estado brasileiro enviou uma resposta em que alega "improcedência, devido a falta de caracterização de uma situação de extrema gravidade e urgência".


Os representantes do país também argumentaram que "a maioria dos fatos listados pela comissão já foram considerados" e que não havia "uma ação deliberada do Estado" nesta crise.


Por fim, o documento ainda informa que todas as ações requeridas pela comissão já haviam sido colocadas em prática — como, por exemplo, o início de investigações da Polícia Federal sobre os casos de violência e homicídio, a criação de barreiras sanitárias para impedir a transmissão de doenças e o reforço nos programas de atenção básica de saúde entre os indígenas.


O Brasil, então, solicitou que o pedido de medidas provisórias fosse rechaçado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.


O veredito

Mesmo diante dos argumentos apresentados pelo Brasil, os membros da corte manifestaram "grande preocupação" com o que acontece com os três povos indígenas.


Na decisão, divulgada em julho de 2022, os autores reforçam e deixam claro que se trata de uma situação de extrema gravidade e urgência.


Eles também apontam que "as violações seguem ocorrendo".


A partir dessa análise, a corte determinou por unanimidade a adoção de oitos medidas provisórias pelo Estado brasileiro:


  • Proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku, a partir de uma perspectiva culturalmente adequada, com um enfoque em gênero e idade;
  • Prevenir a exploração e a violência sexual contra as mulheres e as meninas dos povos indígenas;
  • Prevenir a propagação e mitigar o contágio por enfermidades, especialmente a covid-19, prestando aos indígenas uma atenção médica adequada, de acordo com as normas internacionais aplicáveis;
  • Proteger a vida e a integridade pessoal das lideranças indígenas que se encontram ameaçadas;
  • Coordenar de forma imediata esse plano de ações e informar os líderes indígenas sobre o avanço das medidas;
  • Apresentar um relatório atualizado sobre as medidas tomadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos até 20 de setembro de 2022;
  • Pedir que os representantes dos povos indígenas façam observações sobre o relatório apresentado em setembro, para que as ideias sejam discutidas e aprimoradas;
  • Apresentar novos relatórios sobre a situação a cada três meses.



O Brasil faz parte da Convenção Americana de Direitos Humanos desde 25 de setembro de 1992. 


O país também reconhece a autoridade desta corte internacional desde 10 de dezembro de 1998.


Em visita ao território yanomami, Lula diz que a situação é 'desumana'. Lula coloca a mão na cabeça de uma criança indígena. CRÉDITO RICARDO STUCKERT/PR


Na prática, isso significa que as sentenças e as medidas provisórias emitidas pelo órgão são de cumprimento obrigatório por todos os Estados-membros (como é o caso do Brasil).Na prática, porém, as medidas foram ignoradas. Como citado no início da reportagem, a assessoria de comunicação da corte informou à BBC News Brasil que "aguarda uma resposta do Estado brasileiro" e não foram enviados os relatórios nos prazos indicados — o primeiro deles em setembro de 2022 e, a partir de então, a cada três meses.


A maior reserva indígena do Brasil

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a terra indígena yanomami é habitada por oito povos, possui cerca de 26,7 mil habitantes e compreende uma área de 9,6 milhões de hectares.


Ela foi homologada e reconhecida pelo governo brasileiro em 1992, por meio de um decreto assinado pelo então presidente Fernando Collor (PTB).


O território está localizado entre os Estados do Amazonas e de Roraima, ao norte, na divisa de Brasil e Venezuela.


Entre os povos que habitam o local, estão os yanomami, os ye'kwana (ambos citados na decisão da Corte Interamericana), os isolados da Serra da Estrutura, os isolados do Amajari, os isolados do Auaris/Fronteira, os isolados do Baixo Rio Cauaburis, os isolados Parawa u e os isolados Surucucu/Kataroa.


Já os munduruku habitam regiões e territórios de floresta e rios navegáveis no Pará, no Amazonas e no Mato Grosso. O principal território indígena dessa população fica próximo do rio Cururu, um afluente do Tapajós.


O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do ISA, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região.


"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.


Pista de pouso em terra yanomami que é usada por garimpeiros ilegais. GETTY IMAGES


O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares.


"Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.


O relatório informa que o avanço do garimpo sobre as terras indígenas está atrelado a "perdas consideráveis" na qualidade de vida dos moradores da região, com pioras nos indicadores de violência, saúde e suporte social.


O garimpo ilegal também é a principal fonte de problemas entre os munduruku.


Segundo o ISA, esta terra indígena "está entre as mais pressionadas e ameaçadas pelo garimpo ilegal na Amazônia".


"O monitoramento Sirad-I identificou 440 hectares de floresta desmatada no interior do território desde o início do ano - 136 hectares só no mês de outubro. Desde 2020, quando a TI começou a ser monitorada, 1,5 milhão de árvores foram derrubadas", informa o órgão.


- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64388813

O relatório que apontava há 56 anos maus-tratos a indígenas e descaso de militares

 

Relatório mostrou o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960.  ARMAZÉM DA MEMÓRIA


Atenção: o texto a seguir contém relatos que podem ser perturbadores para alguns leitores


A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar vestígios. É o que destacava em 1967 o procurador Jader de Figueiredo Correia em um relatório que descrevia violências praticadas contra povos indígenas no Brasil por militares, integrantes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), funcionários públicos, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, madeireiros e empresários.


"A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. 


A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível", revelava o relatório escrito há 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.


Ele mostrava o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. "O Serviço de Proteção ao Índio degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio", apontou o relatório, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.


Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, violência e falta de assistências a comunidades indígenas no Brasil, como os Yanomami, já estava documentado naquele relatório composto por 26 volumes e 5.492 páginas.


A investigação foi resultante de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas.


Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Houve a recomendação de prisões, demissões ou a suspensão do trabalho, além de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judiciário.


Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Fundação Nacional do Índio, que passou depois a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Ninguém foi preso.


'Estado é autor'

A Comissão Nacional da Verdade investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorrida no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, através de seus servidores, ou de forma indireta, por omissão diante dos ataques contra essas populações originárias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a conivência de políticos locais, estaduais e federais.


"Há repetição permanente desse problema. São 56 anos desde a denúncia do Relatório Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional indígena às suas terras e ao usufruto de seus territórios segue inalterado. 


Os povos são atacados em suas comunidades e aldeias, sem solução", reclama Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, responsável pelo resgate do Relatório Figueiredo nos arquivos do governo federal.


O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situação de "o maior escândalo administrativo do Brasil".


Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do indígena, assassinatos individuais e coletivos, prostituição de indígenas, sevícias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, dilapidação do patrimônio indígena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, exploração de minérios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doação criminosa de terras, venda de veículos.


Relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcançou cifras incalculáveis. Não sendo "possível levantar com exatidão os valores subtraídos aos índios (sic) para exigir ressarcimento".


Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adulteração de documentos oficiais, fraudaram processos de comprovação de contas, desviaram verbas orçamentárias, aplicaram irregularmente dinheiro público. Eles acarretaram em omissões dolosas das autoridades e dos próprios servidores, admissões fraudulentas de funcionários e incúria administrativa.


Crueldade

Com relação à violência, o documento registra o genocídio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lançamento de explosivos de avião sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio.


"Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avião, e a estricnina (veneno) adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de 'pi-ri-pi-pi' (metralhadora) e racham vivos, a facão, do púbis para a cabeça o sobrevivente", relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia.


O caso do extermínio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. 


Depoimento de Ramis Bucair, servidor público, descreve a ação de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a ação, localizaram com vida uma indígena e seu filho de seis anos. 


O menino acabou morto com um tiro na cabeça. A mulher foi pendurada pelos pés, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de facão.


A comissão chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das mãos do próprio Ramos Bucair uma fita de áudio com a gravação da confissão do crime, com a voz de Ataíde Pereira dos Santos.


Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

Também há registro sobre a extinção de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó-Hãhãhãe, utilizando o envenenamento químico de doença. 


"A serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas a denúncia de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo".


"É preciso desarmar os mecanismos de repetição da história que existem. A não-repetição de violações de direitos humanos pressupõe a criação de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gestão e ação do Estado brasileiro. 


Estes procedimentos se constituem em prática lesiva ao direito indígena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário que, quando não são protagonistas, dão sustentação fundamental à repetição de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme denúncias de genocídio e crimes de lesa-humanidade em análise no Tribunal Penal Internacional", afirma Marcelo Zelic.


Relatório da Comissão Nacional da Verdade

Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.


No relatório da CNV são apontadas as mortes de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos.


No capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas consta que o maior número de mortos está entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) - 2.650 mortos; Tapayuna (MT) - 1.180; Yanomami (AM/RR) - 354; Xetá (PR) - 192; Panará (MT) - 176; Parakanã (PA) - 118; Xavante Marãiwatsédé (MT) - 85; Araweté (PA) - 72 e Arara (PA) - 14 mortos.


Atualmente, a população brasileira é composta por aproximadamente 900 mil indígenas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.


Responsável pela saúde indígena na década de 1970, a Funai foi omissa e levou à morte muitos indivíduos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relatório. Eram casos de sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por infecções sexualmente transmissíveis.


O mesmo relatório da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o município de Caracaraí e o limite entre Roraima e Amazonas, também provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 indígenas abrigados em malocas no rio Catrimani na década de 70.


'Ciclo de violência contra os povos indígenas'

"O Relatório Figueiredo elencava entre 'os crimes contra a pessoa e a propriedade do índio' práticas como, entre outras, 'sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena'. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas práticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em consideração o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constituição, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanitária", diz Edilene Coffaci, antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).


E Marcelo Zelic diz: "Os governos agem sob pressão. O Estado age para tirar o problema da frente, mas é uma situação cíclica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema é grave, vai para a imprensa, há uma ação da sociedade. Daqui a pouco tudo some do noticiário e as coisas voltam a ser como eram antes".


Esse ciclo de violência contra os povos indígenas não termina porque corresponde a uma cultura de índole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.


Attié afirma que os indígenas estão sendo expropriados de seus territórios e violentados desde a chegada europeia, no século 16. "Penso que essa expropriação sempre se deu de modo ilícito - foram construídas teorias jurídicas especificamente para justificar esse processo, conferindo àqueles que se apropriaram das terras indígenas títulos falsos, validados pela própria constituição do direito moderno, que subsiste até hoje".


Para superar esse ciclo, há necessidade de medidas que dizem respeito a políticas públicas, sobretudo as de reconhecimento dos territórios e de sua proteção efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.


O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. ARMAZÉM DA MEMÓRIA

"Igualmente, há necessidade de impedir que os assassinatos contra líderes indígenas permaneçam. A criação de um Ministério para os Povos Indígenas significa alçar as políticas da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente", diz Attié.


"Mas isso não basta, pois há necessidade de enfrentar corajosamente a revisão do que significa propriedade e restabelecer a propriedade indígena - são os verdadeiros donos do território brasileiro - e empreender uma política bastante radical na reatribuição de terras, o que afetará os donos do poder e os donos de extensas áreas, detentores ilegítimos do que não lhes pertence de direito", afirma Attié, ao apontar que "talvez auxilie na compreensão dessa política a consciência de que defender indígenas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que são guardiães."


Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Também aponta que "nunca se investigou o Reformatório Krenak, que era um campo de concentração, quantas terras indígenas foram invadidas, quantas crianças indígenas foram levadas à força em aviões da FAB para outras regiões do país, quantos Guaranis foram mortos na construção da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos indígenas".


Para garantir o direito e a vida dos povos indígenas, reafirma o professor do Mackenzie, é preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constituição brasileira.


"A terra indígena é ancestral, essencial para a existência dessas culturas. Os povos indígenas não detêm a terra, eles são a própria terra. Também é necessário dar maior protagonismo a esses povos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a presidência da nova Funai com uma indígena, como começou a ser feito agora", diz Bastos.


- Este texto foi publicado em  https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64384247

Medo de represália inibia denúncias sobre crise dos yanomami, diz médica

Médicos reforça necessidade de ajuda humanitária após saída de garimpeiros de terras yanomami


A pediatra Priscila Tatiana Gonçalves, de Taubaté (SP), realiza atendimentos com indígenas há quase uma década.


Ela é uma das voluntárias da ONG Expedicionários da Saúde (EDS), que desde 2004 planeja expedições para realizar consultas, exames e cirurgias em territórios indígenas espalhados pela Amazônia.


Em novembro de 2022, a médica integrou uma comitiva que realizou uma ação emergencial de saúde no território yanomami.


Ao longo de dez dias, ela integrou uma equipe com outro colega médico e dois enfermeiros que visitou cinco unidades de saúde indígena (Casai-Boa Vista, Xitei, Surucucu, Missão Catrimani e Demini), fez atendimentos médicos e distribuiu insumos e medicamentos básicos.


Em entrevista à BBC News Brasil, Gonçalves disse que o cenário já era "terrível" e "absurdo". Ela também explicou que a crise só ganhou uma proporção maior agora porque há uma "abertura para diálogo" e menos risco de represálias.


"Até recentemente, algumas enfermeiras que atuam nesses locais compartilhavam histórias de que sofriam vários tipos de repressão. Alguns profissionais de saúde que trabalhavam lá há anos foram demitidos desde que a coordenação do serviço foi trocada. E os coordenadores que foram nomeados não tinham nenhuma afinidade com o assunto, nunca trabalharam com saúde indígena", relatou.




A pediatra também destacou alguns casos marcantes que marcaram os dez dias de trabalho — como a morte de uma criança indígena com malária cerebral que estava numa região remota, sem acesso a qualquer tratamento.


Ela ainda ponderou sobre a necessidade de suporte aos indígenas assim que os garimpeiros forem expulsos da região.


"Temos que pensar como ficará a situação desses indígenas a partir de agora. O que vai acontecer se todos os garimpeiros forem retirados dali de uma hora para outra? Muitos jovens estão envolvidos nesse trabalho. [...] Num primeiro momento, a saída dos garimpos será ruim para alguns. Porque os indígenas já não têm nada e, quando sair esse garimpeiro que dá saco de arroz e espingarda, vai demorar um certo tempo até eles conseguirem voltar ao modo de vida que tinham antes", aponta.


Confira os principais trechos da entrevista a seguir.


BBC News Brasil - Como a senhora teve contato com os yanomami?


Priscila Tatiana Gonçalves - Eu participo de expedições da EDS desde 2014 e 2015. As expedições são mais voltadas para a área cirúrgica, mas também temos uma parte clínica. Até porque nós vamos para territórios onde muitas vezes não existem médicos fazendo atendimento clínico.


Normalmente, as equipes de saúde nesses lugares são formadas por enfermeiros e técnicos de enfermagem. Então, funcionamos como um complemento à expedição.


Em relação aos yanomami especificamente, nós já estávamos vendo a situação piorar de forma muito assustadora nos últimos anos. Foi por isso que fomos até lá. Normalmente, nós sempre ouvimos as lideranças locais, com quem a EDS tem um contato muito próximo por causa do vínculo que foi criado ao longo de todos esses anos.


Numa das últimas expedições, fomos até a Casa de Saúde Indígena Yanomami, em Boa Vista, e identificamos um cenário que já era terrível. Era exatamente o que veríamos pouco depois, nas denúncias que ganharam o noticiário nos últimos dias.


Depois disso, começamos a entrar em contato com as lideranças, para conseguirmos fazer as entradas nessas regiões específicas, que estavam sem atendimento. E é muito difícil chegar até lá.


Nessa região onde vivem os yanomami, sabíamos que eles não estavam recebendo as medicações. Também tínhamos ciência de que entrar ali era um risco para nós mesmos. Porque estávamos num local sem acesso a água e luz, em que precisávamos dormir dentro dos centros de saúde, cercados pelo garimpo.


E é muito difícil falar sobre o que vimos lá. A situação era absurda. Voltamos já pensando em um plano de ação, tentando contato com os Médicos Sem Fronteiras e a Unicef. O déficit nutricional era gritante. Crianças e idosos estavam muito desnutridos. Praticamente todos estavam nessa condição.


"Crianças e idosos estavam muito desnutridos", diz médica.  EXPEDICIONÁRIOS DA SAÚDE


E é curioso, porque há áreas dentro do território yanomami onde praticamente não há desnutrição. Fomos, por exemplo, para uma região chamada Demini e ali as crianças estão saudáveis, não tem malária, nem garimpo.


Então vimos situações completamente diferentes dentro de um mesmo território, uma mesma população. E não há justificativa para tudo o que está acontecendo. Falta medicamento, falta assistência de saúde.


BBC News Brasil - Mas a senhora teve contatos anteriores com os yanomami? A situação era diferente em outras situações?


Gonçalves - Sim, geralmente a logística é um pouco diferente quando vamos para alguma área onde os yanomami estão próximos. Nós vamos até eles e fazemos uma triagem, até pelo fato de ser uma comunidade coesa e não ter muito contato com outros grupos. Nós fazemos então o atendimento deles, muitas vezes até antes da expedição começar.


BBC News Brasil - Mas se o problema com os yanomami já acontece há alguns anos, por que ele ganhou essa dimensão nacional só agora? A situação de fato piorou recentemente ou ela foi sempre ruim?


Gonçalves - A situação é completamente diferente nas regiões de serra, pois os yanomami que habitam esses locais já têm uma dificuldade maior de obter alimentos. O que vimos recentemente, e está muito claro em relatórios de outras instituições, como o Instituto Socioambiental, é o avanço das áreas de garimpo.


Nós descemos nas mesmas pistas usadas pelos garimpeiros e eles estavam o tempo todo com a gente. Outra coisa que observamos foi a contaminação da água. As mulheres yanomami costumam passar o dia coletando pequenos crustáceos em igarapés, que são uma fonte importante de proteína. Outras fontes de proteína são a caça e a pesca. E dava pra ver que eles simplesmente não tinham mais acesso a isso. Ou seja, não tinham como obter os tipos de proteína mais comuns da dieta deles.


Mesmo as frutas estavam diferentes. Eles consomem o jambo, que é uma fruta grande. Nessa última entrada, vimos indígenas comendo o fruto pequeno, ainda verde, porque não tinham outras opções de alimento.


As crianças que atendemos estavam muito desnutridas e pareciam estar há anos sem receber nenhum tipo de medicamento, como os vermífugos. Algumas eliminavam vermes pela boca. Outras tinham o abdômen muito amplo, um sinal claro de verminose, e as demais partes do corpo muito emagrecidas, num claro sinal de desnutrição. Numa situação dessas, qualquer problema de diarreia ou pneumonia pode levar a óbito em poucos dias.


Ou seja, as crianças das regiões de garimpo eram muito diferentes de qualquer indígena de outras áreas. A diferença é muito gritante. Quando chegamos, olhamos aquilo e ficamos sem saber por onde começar. Sabíamos que a situação era grave. Sabíamos que as crianças precisavam sair dali para fazer uma recuperação nutricional numa clínica. Mas isso era impossível, não conseguiríamos remover todos aqueles jovens para deixá-los 30 ou 40 dias internados num outro lugar.


Em outros territórios indígenas, até vemos quadros de desnutrição. Mas eles são agudos, provocados por uma deficiência nutricional específica, porque faltou algum alimento temporariamente. Em certas regiões yanomami, o problema era geral. Vimos desnutrição, casos de malária sem tratamento, quadros com diarreia e pneumonia. E o pior de tudo é que todas são doenças com tratamento. Dava pra ver que as crianças estavam tristes, quando o estado normal delas é de alegria, de brincar o tempo todo, de interagir com os outros.


BBC News Brasil - Mas quantas crianças eram acometidas por esse quadro que a senhora descreveu? Qual a proporção de afetados em relação ao tamanho da população?


Gonçalves - Para você ter uma ideia, visitamos regiões com cerca de 150 indígenas, dos quais 40 eram crianças. Dessas, ao redor de 30 se encontravam num estado de desnutrição grave e as outras 10 estavam em vias de iniciar um quadro desses. Esses não são números exatos, mas dão uma ideia do tamanho do problema.


Um dos enfermeiros que estava com a gente relatou que foi para o Haiti em 2010. Naquela catástrofe, as pessoas andavam pelas ruas sem rumo. E ali, nessa região yanomami, a sensação era a mesma. Estávamos diante da catástrofe de toda uma população.


'Para você ter uma ideia, visitamos regiões com cerca de 150 indígenas, dos quais 40 eram crianças. Dessas, ao redor de 30 se encontravam num estado de desnutrição grave', relata médica EXPEDICIONÁRIOS DA SAÚDE

A região do Surucucu conta com um centro de saúde em que há um médico. E comunidades inteiras vão para lá, após caminharem por quatro, cinco ou seis dias. Eles preferem ficar perto desse posto porque sabem que ali há a possibilidade de comer e receber tratamento. Eu nunca estive num campo de refugiados de guerra, mas acredito que a situação que vimos era similar.


BBC News Brasil - Mas esse é um problema que se acentuou nos últimos anos? Ou é algo que já se arrasta por décadas?


Gonçalves - Eu não consigo contabilizar exatamente isso, mas o que vimos nesses últimos quatro anos foi o fechamento de muitos dos centros de saúde da região. Alguns deles, inclusive, foram convertidos em áreas de garimpo. Os garimpeiros tomaram conta desses centros, a ponto de os profissionais de saúde não conseguirem mais entrar ali.


Ou seja, a população local deixou de ter acesso às consultas de rotina e à vacinação. Fora que, diante de um problema de saúde grave, você não consegue transferir a criança ou o adulto para um centro mais capacitado.


Outro ponto é que as medicações não chegavam. Na entrada que fizemos no final de 2022, compramos remédios contra verminoses. O Ministério da Saúde tem alguns protocolos que determinam a aplicação desses remédios de tempos em tempos. Pelo menos uma vez por ano, você oferece esse tratamento para eliminar os vermes daquela população.


Isso é importante para que as crianças consigam ter um desenvolvimento nutricional adequado. Agora, se ela tem uma verminose importante, esse é mais um motivo para que tenha uma perda de desenvolvimento.


Vimos que todas aquelas crianças estavam sem receber a medicação há anos. Se você olhar as listas do Ministério da Saúde, há informação de que o remédio foi comprado e entregue. Mas ele nunca chegou até lá.


BBC News Brasil - Na visão da senhora, o que levou a esse cenário? Como a situação chegou a esse ponto?


Gonçalves - Eu não sei. Nesses últimos quatro anos, a EDS recebeu muitos pedidos de socorro dos yanomami. Nós já fizemos expedições lá, então eles conheciam nosso trabalho e sabiam que chegamos com uma estrutura, com a possibilidade de fazer tratamentos médicos e prover alimentos na medida do possível.


Resolvemos ir até lá com o auxílio das lideranças locais, para ver se como estava essa região do Surucucu. Conversamos com agentes de saúde indígena, enfermeiros e técnicos de enfermagem que trabalham no local há 10 ou 15 anos, e eles disseram que nunca viram algo assim.


Outra coisa que chamou nossa atenção aconteceu na Casai Yanomami, que fica em Boa Vista. Vimos dezenas de famílias inteiras que estavam ali abandonadas. Por que esses indivíduos estavam ali? Não fazia o menor sentido. Eles chegaram lá para fazer algum atendimento na cidade e receberam a recomendação de suporte nutricional. Só que eles estavam lá por um ano, sem nenhuma perspectiva de voltar para a comunidade deles. Não fazia sentido do ponto de saúde estarem ali, pois já deveriam ter recebido alta há tempos.


BBC News Brasil - A senhora mencionou a falta de autorização e suporte do Governo Federal. Existia algum bloqueio em falar sobre a crise de saúde dos yanomami? Se sim, isso contribuiu para que o assunto só ganhasse uma proporção maior agora, com a transição de governos?


Gonçalves - Eu acho que as próprias mudanças recentes nas coordenadorias de saúde indígena e no Ministério da Saúde facilitaram isso, pois abrem o diálogo e tentam fazer uma união. Porque esse é um problema que ninguém conseguirá resolver sozinho. Precisamos de uma frente.


Essas populações conseguem viver muito bem. Basta a gente não atrapalhar. Agora, eles estão nessa situação de risco, então é uma obrigação nossa de pelo menos ajudá-los a sair dessa urgência.


Acho que a gente pode falar agora, porque sabemos que eles não vão sofrer represálias. Até recentemente, algumas enfermeiras que atuam nesses locais compartilhavam histórias de que sofriam vários tipos de repressão. Alguns profissionais de saúde que trabalhavam lá há anos foram demitidos desde que a coordenação do serviço foi trocada. E os coordenadores que foram nomeados não tinham nenhuma afinidade com o assunto, nunca trabalharam com saúde indígena


BBC News Brasil - Durante a última entrada no território yanomami, a senhora testemunhou alguma história que chamou mais a sua atenção?


Gonçalves - Sim, atendemos uma criança com malária cerebral [complicação da infecção marcada por febre alta, dor de cabeça, sonolência, delírio, confusão, convulsões e coma].


Ela provavelmente estava malária e começou a ter convulsões. O problema era que só tínhamos o contato pelo rádio, porque não conseguimos chegar aonde ela estava. Passamos a madrugada toda em contato pelo rádio, falando com o técnico de enfermagem que estava lá. Mas ele não tinha nenhum remédio para convulsão. Ela também não tinha iniciado o tratamento de malária, porque esse remédio também estava em falta.


Ficamos em contato pelo rádio, mas a situação era precária. A antena não funcionava direito. Então ficava uma pessoa segurando a antena, e outra falando pelo aparelho. Passamos a madrugada toda tentando chamar o socorro aéreo, para que ele fosse até a comunidade para resgatar essa criança. No final, a criança faleceu.


Outra história que nos marcou foi a de uma criança que estava provavelmente com infecção respiratória. Felizmente, ela conseguiu ser levada até onde estávamos. Lá, tínhamos energia elétrica e um pequeno gerador para fazer a oxigenação. Teve um momento, também de madrugada, que a luz acabou e ficamos contando as horas para chegar o socorro aéreo. Felizmente conseguimos transferi-la a tempo.


Na maioria das vezes, essas situações são evitáveis. O mínimo que esperamos é ter oxigênio, água e medicações como analgésicos e antibióticos. Pelo menos, assim conseguimos estabilizar o quadro e aliviar o sofrimento enquanto não chega o transporte para um hospital.


Para piorar, muitas dessas situações estavam controladas no passado. A malária, por exemplo, estava praticamente eliminada dessa região. Não tínhamos quadros de desnutrição dessa gravidade. E tudo piorou de forma absurda em poucos anos. É algo muito difícil de entender e de falar. Eu nunca imaginei que veria uma coisa dessas.


BBC News Brasil - Do ponto de vista técnico, como todas essas questões engatilhadas a partir do garimpo — como a malária, a desnutrição e a falta de assistência em saúde — afetam a saúde das crianças?


Gonçalves - A falta de um aporte nutricional adequado faz com que a criança sofra com o agravamento de várias outras doenças. Além disso, a desnutrição impede o desenvolvimento do cérebro e do corpo.


E foi o que vimos nesta última entrada que fizemos. As famílias não tinham mais roças, frutas para consumo, pesca, caça ou crustáceos. Isso porque as comunidades geralmente ficam próximas de uma fonte de água, como um rio ou um igarapé. Só que o garimpo se instalou junto das aldeias.


Vimos igarapés completamente degradados, com água amarela, com manchas de contaminação. Naquela água, não existem mais condições de vida para os peixes.


Para completar, a presença do garimpo afasta a caça. Os garimpeiros usam helicópteros e outras máquinas grandes e barulhentas. Isso assusta os animais, que vão para outros lugares.


Todas essas mudanças levam, inclusive, a confrontos entre os indígenas. Porque há grupos que são mais favoráveis aos garimpeiros, enquanto outros são contra. Cheguei a ver crianças pequenas com espingardas nas mãos. Essas armas eram trocadas por trabalho. Elas ficavam o dia todo recolhendo cassiterita [um tipo de minério]. Eram quilos e quilos. Esse material era colocado em sacolas para depois ser recolhido por um helicóptero. Esse trabalho é pago com sacos de arroz ou pequenas espingardas.


BBC News Brasil - Vocês sofreram alguma ameaça de garimpeiros enquanto estiveram por lá?


Gonçalves - Nós tínhamos contato com eles o tempo todo. Durante o dia inteiro, ouvíamos a chegada dos helicópteros dos garimpeiros. Não sei quantificar com exatidão, mas era uma nova aeronave subindo e descendo a cada duas horas mais ou menos. Foi aí que percebemos que estávamos trabalhando numa situação de risco. De vez em quando, ouvíamos alguns tiros. Quando perguntávamos para os indígenas que estavam por perto, eles diziam que era briga.


Também temos que pensar como ficará a situação desses indígenas a partir de agora. O que vai acontecer se todos os garimpeiros forem retirados dali de uma hora para outra? Muitos jovens estão envolvidos nesse trabalho de garimpo, de recolher a cassiterita. Num primeiro momento, a saída dos garimpeiros será ruim. Porque eles já não têm nada. Porém, quando esse garimpeiro, que dá saco de arroz e espingarda, for embora, vai demorar um certo tempo até conseguirem voltar ao modo de vida deles. Até esse período de adaptação, eles não terão o alimento. E já não têm saúde.


Muitos indígenas com quem conversamos sempre falavam que o mais importante de tudo é a saúde. E eles precisarão de algum suporte até que decidam como vai ser a vida depois. Eles têm essa autonomia e esse direito. Eles sabem exatamente o que querem. Basta não atrapalharmos.


Tivemos no passado outras comunidades invadidas pelo garimpo que foram desestruturadas e depois conseguiram restabelecer os modos de vida tradicionais. Mas eles precisarão de ajuda neste período de transição em que passarão a viver sem os garimpeiros.


- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64381594

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